EXTRA ECCLESIAM NULLA SALUS

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A Bíblia: Um Livro Para Católicos



Todo autor escreve para um público específico.

Ao compor a sua obra, o autor normalmente direciona o texto para um determinado grupo. Embora pessoas de fora do grupo possam ter acesso ao livro, elas não serão capazes de desfrutar de todo o conteúdo da obra, por faltar-lhes uma série de elementos que tornam a obra em questão obscura em diversos aspectos.

Quem escreve livros de medicina fará uso de um vocabulário e de construções que são típicas daqueles que exercem ou estudam a arte de Hipócrates. Aqueles que não estiverem inseridos no "mundo" da medicina provavelmente encontrarão muitas dificuldades quando se puserem a ler uma obra sobre, por exemplo, histologia.

Ademais, escrever um livro para que um determinado grupo possa lê-lo significa supor a existência deste grupo. Pois, apenas assim o autor poderá decidir-se sobre qual idioma utilizar; sobre o modo de se utilizar este idioma; sobre o que escrever para que a mensagem seja compreendida corretamente; entre outras medidas que serão tomadas.

Percebemos, desta maneira, que jamais poderemos escrever um livro que seja de interesse dos Yutumpinianos. E por qual motivo não poderemos fazê-lo? Pelo simples fato de os Yutumpinianos não existirem.

Mas o que tudo isso tem a ver com a Biblia? E que história é essa de que ela é "um livro para católicos"? Vamos então entrar no tema "Bíblia" propriamente dito...Contudo, o que é a Bíblia? Certamente muitos já tem a resposta na ponta da língua: é a Palavra de Deus. Mas uma outra pergunta se impõe: e quem disse que a Bíblia é a palavra de Deus?  Bem, vamos dar início a nossa análise.

Primeiramente devemos entender que a Bíblia não é um livro único; um livro que fora escrito ininterruptamente do começo ao fim. Como o próprio nome indica (a palavra "bíblia" significa "livros", em grego), a Bíblia é um composto de livros, somando 73 livros (sei que alguns começam a se agitar em suas cadeiras. Calma, tudo será explicado!).

Os livros da Bíblia (bem como as epístolas) foram escritos ao longo de séculos e séculos. Escrevia-se para se atender às necessidaes doutrinais que surgiam acerca da Revelação. O início dos registros sagrados deve-se aos judeus, conforme bem lembra D. Estevão Bettencourt, em seu curso bíblico:
As passagens bíblicas começaram a ser escritas esporadicamente desde os tempos anteriores a Moisés; é de notar que a escritura era uma arte rara e cara na antiguidade. Moisés foi o primeiro codificador das tradições orais e escritas de Israel, no século XIII a.C. - Essas tradições (leis, narrativas, peças litúrgicas) foram sendo acrescidas aos poucos por outros escritos no decorrer dos séculos, sem que os judeus se preocupassem com a catalogação das mesmas...Assim foi-se formando a biblioteca sagrada de Israel.
Com o advento do cristianismo, não foi diferente. A necessidade de registrar os fatos ocorridos durante a vida de Nosso Senhor levou muitos cristãos a narrar o que viam ou ouviam. Conforme o Evangelho difundia-se, os apóstolos escreviam narrativas e exortações destinadas ao público cristão, ou seja, à Igreja. Estes livros sagrados encontravam o seu uso na liturgia, eram lidos durante os ofícios sagrados. Era na Missa que se lia para os fiéis aquilo que saíra da pena dos apóstolos.

Já ouço os clamores: "Como assim os cristãos primitivos iam à Missa? Que absurdo! Missa foi algo criado pelos homens muitos anos depois de Cristo!". Como o tema aqui não é "Missa", não aprofundarei o assunto. Mas, aos interessados, citarei um trecho da obra de São Justino, que viveu no segundo século de nossa era, chamada "I Apologia".   Vejamos o que ele diz do culto cristão primitivo.         
                       
      No chamado dia do Sol, reúnem-se em um mesmo lugar todos os que moram nas cidades ou nos campos. Lêem-se as memórias dos apóstolos ou outros escritos dos profetas, na medida em que o tempo permite.  
      Terminada a leitura, aquele que preside toma a palavra para aconselhar e exortar os presentes à imitação de tão sublimes ensinamentos.
        Depois, levantamo-nos todos juntos e elevamos as nossas preces; como já dissemos acima, ao acabarmos de rezar, apresentam-se pão, vinho e água. Então, o que preside eleva ao céu, com todo o seu fervor, preces e ações de graças, e o povo aclama: Amém. Em seguida, faz-se entre os presentes a distribuição e a partilha dos alimentos que foram eucaristizados, que são também enviados aos ausentes por meio dos diáconos.
        Os que possuem muitos bens dão livremente o que lhes agrada. O que se recolhe é colocado à disposição do que preside. Este socorre os órfãos, as viúvas e os que, por doença ou qualquer outro motivo se acham em dificuldade, bem como os prisioneiros e os hóspedes que chegam de viagem; numa palavra, ele assume o encargo de todos os necessitados.Reunimo-nos todos no dia do Sol, não só porque foi o primeiro dia em que Deus, transformando as trevas e a matéria, criou o mundo, mas também porque neste mesmo dia Jesus Cristo, nosso Salvador, ressuscitou dos mortos. Crucificaram-no na véspera do dia de Saturno 
(Eis aí! A Missa a que assistimos ainda hoje é essencialmente a mesma dos tempos primitivos! Para maiores informações, sugiro que recorram à obra citada e que leiam os capítulos 66 e 67. A propósito, o "dia do Sol" é, em latim, o solis dies, ou seja, o domingo).

Mas, voltando ao tema. Uma vez visto que o culto cristão primitivo era a Missa, e uma vez entendido que os livros escritos eram para ser lidos nestes cultos, podemos avançar para um próximo passo.

Será que existiam, por este período, falsos escritos que poderiam infiltrar-se nas comunidades? A resposta é um sonoro sim. E foi justamente para combater erros que estavam começando a se propagar entre os cristãos através de escritos enganosos que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, achou por bem compilar todos os livros sagrados em um só volume, e fazer com que estes fossem lidos nas assembleias.

Assim, podemos perceber que quando diversos escritos começaram a circular entre os cristãos e a causar uma série de confusões, pois muitos destes escritos (os chamados "Apócrifos") contrariavam aquilo que era o ensinamento corrente da doutrina cristã, a Igreja teve que reagir. Diante do perigo de se propagar falsas doutrinas na Igreja, esta achou por bem definir quais seriam, afinal, os livros verdadeiramente inspirados por Deus. Livros que poderiam ser lidos nas Missas sem que se apresentasse quaisquer riscos para os fiéis que ali estivessem presentes.

Logo, até este fato, não se podia falar de Bíblia propriamente dita. Não se tinha, ainda, uma posição oficial das autoridades cristãs acerca da canonicidade dos livros. Sabemos que a própria Bíblia não nos diz quais são os livros inspirados ou não, assim, apenas uma autoridade legítima poderia fazê-lo. E quem o fez foi a Hierarquia da Igreja. Lembremos que se não fosse a Igreja não estaríamos absolutamente certos da veracidade doutrinal nem mesmo dos Evangelhos. Foi a Igreja que ensinou quais livros são veradadeiros, autênticos.

E quais livros estavam contidos na Bíblia destes cristão primitivos? Sabemos que há divergências entre os cristãos acerca de alguns livros do Antigo Testamento. Antes de respondermos diretamente a esta pergunta, gostaria de dar espaço a um interessante comentário de Dom Estevão Bettencourt:
Todavia, no século I da era cristã, deu-se um fato importante: começaram a aparecer os livros cristãos (cartas de S. Paulo, Evangelhos...), que se apresentavam como a continuação dos livros sagrados dos judeus. Estes, porém, não tendo aceito o Cristo, trataram de impedir que se fizesse a aglutinação de livros judeus e livros cristãos. Por isto, segundo bons autores modernos, vários rabinos reuniram-se no sínodo de Jâmnia ou Jabnes ao Sul da Palestina, por volta do ano 100 d.C., a fim de estabelecer as exigências que deveriam caracterizar os livros sagrados ou inspirados por Deus. Foram estipulados os seguintes critérios:

1) o livro sagrado não pode ter sido escrito fora da terra de Israel;
2)...não em língua aramaica ou grega, mas somente em hebraico;
3)...não depois de Esdras
4)...não em contradição com a Torá ou Lei de Moisés.

Em consequência, os judeus da Palestina fecharam o seu Cânon sagrado sem reconhecer livros e escritos que não obedeciam a tais critérios. Acontece, porém, que em Alexandria (Egito) havia próspera colônia judaica, que vivendo em terra estrangeira e falando língua estrangeira (o grego), não adotou os critérios nacionalistas estipulados pelos judeus de Jâmnia. Os judeus de Alexandria chegaram a traduzir os livros sagrados hebraicos para o grego entre 250 e 100 a.C., dando assim origem à versão grega dita "Alexandrina" ou dos "Setenta Intérpretes". Essa edição grega bíblica encerra livros que os judeus de Jâmnia não aceitaram, mas que os de Alexandria liam como palavra de Deus; assim os livros de Tobias, Judite, Sabedoria, Baruque, Eclesiástico (ou Siracides), 1/2 Macabeus, além de Ester 10, 4 - 16, 24; Daniel 3,24 - 90; 13-14.

Podemos dizer, pois, que havia dois cânones entre os judeus no início da era cristã: o restrito da Palestina, e o amplo de Alexandria.

Ora acontece que os Apóstolos e Evangelistas, ao escreverem o Novo Testamento em grego, citavam o Antigo Testamento, usando a tradução grega de Alexandria, mesmo quando esta diferia do texto hebraico; tenham se em vista Mt 1,23 ( --> Is 7,14); Hb 10,5 ( --> Sl 39/40,7); Hb 10,17s (Hab 2,3s); At 15,16s (Am 9,11). O texto grego tornou-se a forma comum entre os cristãos; em consequência o Cânon amplo, incluindo os sete livros e os fragmentos citados, passou para o uso dos cristãos.

Verificamos também que nos escritos do Novo Testamento há citações implícitas dos livros deuterocanônicos. Assim, por exemplo, Rm 1, 19 - 32 --> Sb 13, 1 - 9; Rm 13,1 --> Sb 6,3;
Mt 27, 43 --> Sb 2, 13.18; Tg --1, 19 --> Eclo 5, 11; Mt 11, 29s --> Eclo 51, 23 - 30;
Hb 11, 34s --> 2 Mc 6, 18 - 7, 42; Ap 8, 2 --> Tb 12, 15.

Deve-se notar, por outro lado, que não são (nem implicitamente) citados no Novo Testamento livros que, de resto, todos os cristãos têm como cânonicos; assim Eclesiastes, Ester, Cântico dos Cânticos, Esdras, Neemias, Abdias, Naum, Rute.
Esta versão dos Setenta, na qual estão inseridos os sete livros ausentes no catálogo de muitos irmãos separados, era tão valorizada na igreja primitiva que, conforme atesta Dom Estevão,
(...) das 350 citações do Antigo Testamento no Novo, 300 são tiradas da versão dos Setenta.
E, conforme já o dissemos, mas cabe aqui um reforço:
A própria Bíblia não define o seu catálogo. Portanto, este só pode ser depreendido mediante a Tradição (= transmissão) oral, que de geração em geração foi entregando os livros sagrados ao povo de Deus, indicando-os ao mesmo tempo, como livros inspirados, e por conseguinte, canônicos. Essa tradição via oral fala até hoje pelo magistério da Igreja (...).
Aqui vemos como é incoerente afirmar que se despreza a Tradição e que se fica apenas com a Bíblia. A própria Bíblia é fruto da Tradição da Igreja.

Para terminar com este assunto, uma prova cabal da importância do texto grego do Antigo Testamento para os cristãos, está no fato de utilizarmos os nomes gregos dos livros (Gênesis, Êxodo, etc.) e não, os nomes em hebraico.

E aquela história de que a Igreja Católica adicionou livros à Bíblia no século XVI?

A resposta para esta pergunta é simples: isso é uma mentira deslavada.

Vejamos o que decidiu o Concílio regional de Cartago, século IV, acerca do Cânon:
Parece-nos bom que, fora das Escrituras canônicas, nada deva ser lido na Igreja sob o nome 'Divinas Escrituras'. E as Escrituras canônicas são as seguintes: Gênese, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, quatro livros dos Reinos [Samuel e Reis], dois livros dos Paralipômenos [Crônicas], Jó, Saltério de Davi, cinco livros de Salomão, doze livros dos Profetas, Isaías, Jeremias, Daniel, Ezequiel, Tobias, Judite, Ester, dois livros de Esdras e dois [livros] dos Macabeus. E do Novo Testamento: quatro livros dos Evangelhos, um [livro de] Atos dos Apóstolos, treze epístolas de Paulo, uma do mesmo aos Hebreus, duas de Pedro, três de João, uma de Tiago, uma de Judas e o Apocalipse de João. Isto se fará saber também ao nosso santo irmão e sacerdote, Bonifácio, bispo da cidade de Roma, ou a outros bispos daquela região, para que este cânon seja confirmado, pois foi isto que recebemos dos Padres como lícito para ler na Igreja.
Vê-se, portanto, que a canonicidade de livros como Tobias e Macabeus é reconhecida por cristãos há séculos. As versões da Bíblia anteriores à pseudo-Reforma, como a Bíblia de Gutenberg, trazem todos os 73 livros sagrados. Não foi a Igreja que adicionou livros à Bíblia, foram seus adversários, que tanto dizem amar e obedecer às Escrituras, que retiraram 7 deles da mesma Bíblia.

E se, conforme vimos, houve uma compilação de livros para que estes fossem lidos nas Missas, vemos então que a Bíblia fora escrita e compilada por católicos e para os católicos, pois a Igreja primitiva, a noiva de Cristo, era (é e sempre será) Católica, conforme vimos no post A qual Igreja pertenciam os primeiros cristãos?. Ademais, as outras comunidades cristãs ainda não existiam quando se decidiu sobre o Cânon bíblico, e, assim, a Bíblia não podia ter sido compilada tendo-se em vista tais comunidades, conforme vimos em nosso exemplo hipotético com os Yutumpinianos.

Eis a razão pela qual a Bíblia, quando interpretada à margem do Magistério da Igreja, é causa de conflitos e de desunião, ao passo que, quando valorizada juntamente com a Tradição que vem dos Apóstolos e que está preservada na única Igreja de Cristo, ela ganha um sentido vivo e pleno, e é, antes de tudo, causa de união entre cristãos, os quais professam uma única fé que já dura dois mil anos e que durará eternamente.

Pax Domini Sit Semper Nobiscum

William Bottazzini

São Tomás de Aquino - 3° Parte


Publico hoje a terceira e última parte das Homilias do Papa Bento XVI sobre São Tomás de Aquino.

Todos os negritos são meus.

Pax Domini Sit Semper Vobiscum

William
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Estimados irmãos e irmãs

Hoje gostaria de completar, com uma terceira parte, as minhas catequeses sobre São Tomás de Aquino. Até a mais de setecentos anos de distância da sua morte, podemos aprender muito dele. Recordava-o inclusive o meu Predecessor, o Papa Paulo VI que, num discurso pronunciado em Fossanova no dia 14 Setembro de 1974, por ocasião do sétimo centenário da morte de São Tomás, se interrogava: "Mestre Tomás, que lição nos pode dar?". E respondia com estas palavras: "A confiança na verdade do pensamento religioso católico, como foi por ele defendido, exposto e aberto à capacidade cognoscitiva da mente humana" (Insegnamenti di Paolo VI, XII [1974], págs. 833-834). E, nesse mesmo dia, em Aquino, referindo-se ainda a São Tomás, ele afirmava: "Todos nós que somos filhos da Igreja podemos e devemos, pelo menos em certa medida, ser seus discípulos!" (Ibid., pág. 836).

Por conseguinte, coloquemo-nos também nós na escola de São Tomás e da sua obra-prima, a Summa Theologiae. Ela permaneceu incompleta, e todavia é uma obra monumental: contém 512 questões e 2.669 artigos. Trata-se de um raciocínio cerrado, em que a aplicação da inteligência humana aos mistérios da fé procede com clareza e profundidade, enlaçando perguntas e respostas, nas quais São Tomás aprofunda o ensinamento que deriva da Sagrada Escritura e dos Padres da Igreja, principalmente de Santo Agostinho. Nesta reflexão, no encontro com verdadeiras interrogações do seu tempo, que são muitas vezes também as nossas, São Tomás, utilizando inclusive o método e o pensamento dos filósofos antigos, de modo particular de Aristóteles, chega desta maneira a formulações exatas, lúcidas e pertinentes das verdades de fé, onde a verdade é um dom da fé, resplandece e torna-se acessível para nós, para a nossa reflexão. No entanto, este esforço da mente humanarecorda o Aquinate, com a sua própria vida é sempre iluminado pela oração, pela luz que procede do Alto. Só quem vive com Deus e com os mistérios pode compreender também o que eles dizem.

Na Summa Theologiae, São Tomás começa a partir do fato que há três diversos modos do ser e da essência de Deus: Deus existe em si mesmo, é o princípio e o fim de todas as coisas, pelo que todas as criaturas procedem e dependem dele; em seguida, Deus está presente através da sua Graça na vida e na actividade do cristão, dos santos; por fim, Deus está presente de maneira totalmente especial na Pessoa de Cristo, aqui unido realmente com o homem Jesus, e ativo nos Sacramentos, que brotam da sua obra redentora. Por este motivo, a estrutura desta obra monumental (cf. Jean-Pierre Torrell, La "Summa" di San Tommaso, Milão 2003, págs. 29-75), uma busca com um "olhar teológico" da plenitude de Deus (cf. Summa Theologiae, I a, q. I, a. 7), subdivide-se em três partes e é explicada pelo próprio Doctor Communis São Tomás com as seguintes palavras: "A finalidade principal da sagrada doutrina consiste em fazer com que Deus seja conhecido, e não só em si mesmo, mas também como é princípio e fim das coisas, de maneira especial da criatura racional. Com a intenção de expor esta doutrina, nós falaremos em primeiro lugar sobre Deus; em segundo, sobre o movimento da criatura para Deus; e em terceiro lugar sobre Cristo que, enquanto homem, é para nós o caminho para ascender até Deus" (Ibid., i, q. 2). Trata-se de um círculo: Deus em si mesmo, que sai de si próprio e nos toma pela mão, de tal maneira que assim, com Cristo, voltemos para Deus, permaneçamos unidos a Deus, e Deus será tudo em todos.

Por conseguinte, a primeira parte da Summa Theologiae indaga a propósito de Deus em si mesmo, sobre o mistério da Trindade e acerca da atividade criadora de Deus. Nesta parte encontramos também uma profunda reflexão sobre a realidade autêntica do ser humano enquanto derivado das mãos criadoras de Deus, fruto do seu amor. Por um lado, somos seres criados, dependentes, não derivamos de nós mesmos; mas por outro, gozamos de uma verdadeira autonomia, de tal forma que não somos só aparência como dizem alguns filósofos platônicos mas uma realidade desejada por Deus como tal, e com um valor em si mesma.

Na segunda parte, São Tomás considera o homem, impelido pela Graça, na sua aspiração a conhecer e a amar Deus para ser feliz no tempo e na eternidade. Em primeiro lugar, o Autor apresenta os princípios teológicos do agir moral, estudando como, na livre escolha do homem de realizar atos bons, se integram a razão, a vontade e as paixões, às quais se acrescenta a força que confere a Graça de Deus através das virtudes e das dádivas do Espírito Santo, como também a ajuda que é oferecida inclusive pela lei moral. Portanto, o ser humano é um ser dinâmico que se põe em busca de si mesmo, procura tornar-se ele mesmo e, neste sentido, tenta realizar atos que o edificam, que o tornam verdadeiramente homem; e aqui entra a lei moral, entram a Graça e a própria razão, a vontade e as paixões. Sobre este fundamento, São Tomás delineia a fisionomia do homem que vive em conformidade com o Espírito e que, deste modo, se torna um ícone de Deus. Aqui, o Aquinate detém-se para estudar as três virtudes teologaisfé, esperança e caridade seguidas pelo exame perspicaz de mais de cinquenta virtudes morais, organizadas em volta das quatro virtudes cardeais a prudência, a justiça, a temperança e a fortaleza. Em seguida, termina com a reflexão a respeito das diversas vocações existentes na Igreja.

Na terceira parte da Summa Theologiae, São Tomás estuda o Mistério de Cristo o caminho e a verdade por meio do qual nós podemos unir-nos a Deus Pai. Nesta seção, ele escreve páginas praticamente insuperadas a propósito do Mistério da Encarnação e da Paixão de Jesus, acrescentando depois um vasto estudo sobre os sete Sacramentos, porque neles o Verbo divino encarnado dilata os benefícios da Encarnação para a nossa salvação, em vista do nosso caminho de fé rumo a Deus e à vida eterna, permanece materialmente quase presente com as realidades da criação, tocando-nos deste modo no nosso íntimo.

Falando sobre os Sacramentos, São Tomás reflete de modo particular sobre o Mistério da Eucaristia, pelo qual alimentou uma enorme devoção, a tal ponto que, segundo os antigos biógrafos, costumava aproximar a sua cabeça do Tabernáculo, como que para sentir palpitar o Coração divino e humano de Jesus. Numa das suas obras de comentário à Escritura, São Tomás ajuda-nos a compreender a excelência do Sacramento da Eucaristia, quando escreve: "Dado que a Eucaristia é o Sacramento da Paixão de nosso Senhor, contém em si mesma Jesus Cristo que padeceu por nós. Portanto, tudo aquilo que é efeito da Paixão de nosso Senhor, é também efeito deste Sacramento, uma vez que ele não é outra coisa senão a aplicação em nós da Paixão do Senhor" (In Ioannem, c. 6, lect. 6, n. 963). Assim compreendemos bem por que motivo São Tomás e outros santos celebraram a Santa Missa vertendo lágrimas de compaixão pelo Senhor, que se oferece em sacrifício por nós, lágrimas de alegria e de gratidão.

Prezados irmãos e irmãs, na escola dos santos, apaixonemo-nos por este Sacramento! Participemos na Santa Missa com recolhimento, para alcançar os seus frutos espirituais, nutramo-nos do Corpo e do Sangue de Senhor, para sermos incessantemente alimentados pela Graça divina! Permaneçamos de bom grado e frequentemente, tu a tu, em companhia do Santíssimo Sacramento!

Aquilo que São Tomás explicou com rigor científico nas suas obras teológicas principais, como precisamente a Summa Theologiae e também a Summa contra Gentiles, foi exposto inclusive na sua pregação, dirigida aos estudantes e aos fiéis. Em 1273, um ano antes da sua morte, durante a Quaresma inteira, ele fez pregações na igreja de São Domingos Maior, em Nápoles. O conteúdo destes sermões foi recolhido e conservado: trata-se dos Opúsculos em que ele explica o Símbolo dos Apóstolos, interpreta a oração do Pai-Nosso, ilustra o Decálogo e comenta a Ave-Maria. O conteúdo da pregação do Doctor Angelicus corresponde quase inteiramente à estrutura do Catecismo da Igreja Católica. Com efeito, na catequese e na pregação, numa época como a nossa, de renovado compromisso em benefício da evangelização, nunca deveriam faltar estes argumentos fundamentais: aquilo em que cremos, eis o Símbolo da fé; aquilo que nós oramos, eis o Pai-Nosso e a Ave-Maria; e aquilo que s vivemos, como nos ensina a Revelação bíblica, eis a lei do amor a Deus e ao próximo, e dos Dez Mandamentos, como explicação deste mandato do amor.

Gostaria de propor alguns exemplos do conteúdo, simples, essencial e convincente, do ensinamento de São Tomás. No seu Opúsculo sobre o Símbolo dos Apóstolos, ele explica o valor da fé. Por meio dela, diz, a alma une-se a Deus e brota como que um rebento de vida eterna; a vida recebe uma orientação certa e nós superamos agilmente as tentações. Àqueles que objetam que a fé é uma estultice, porque faz acreditar em algo que não faz parte da experiência dos sentidos, São Tomás oferece uma resposta muito elaborada, e recorda que se trata de uma dúvida inconsistente, porque a inteligência humana é limitada e não pode conhecer tudo. Só se pudéssemos conhecer perfeitamente todas as coisas visíveis e invisíveis, então seria uma autêntica estultice aceitar verdades por pura fé. De resto, é impossível viver, observa São Tomás, sem confiar na experiência dos outros, aonde o conhecimento pessoal não chega. Por conseguinte, é racional ter fé em Deus que se revela e no testemunho dos Apóstolos: eles eram poucos, simples e pobres, amargurados por causa da Crucifixão do seu Mestre; e no entanto, muitas pessoas sábias, nobres e ricas se converteram em pouco tempo à escuta da sua pregação. Com efeito, trata-se de um fenômeno historicamente prodigioso, ao qual é difícil poder dar outra resposta racional, a não ser a do encontro dos Apóstolos com o Senhor Ressuscitado.

Comentando o artigo do Símbolo sobre a Encarnação do Verbo divino, São Tomás faz algumas considerações. Afirma que a fé cristã, tendo em conta o mistério da Encarnação, é revigorada; a esperança eleva-se com maior confiança, ao pensamento de que o Filho de Deus veio entre nós, como um de nós, para comunicar aos homens a sua própria divindade; a caridade é reavivada, porque não existe sinal mais evidente do amor de Deus por nós, do que ver o Criador do universo fazer-se Ele mesmo uma criatura, um de nós. Finalmente, considerando o mistério da Encarnação de Deus, sentimos inflamar-se o nosso desejo de alcançar Cristo na glória. Recorrendo a uma comparação simples e eficaz, São Tomás observa: "Se o irmão de um rei estivesse distante, certamente desejaria poder viver ao lado dele. Pois bem, Cristo é nosso irmão: por conseguinte, temos que desejar a sua companhia, tornando-nos um só coração com Ele" (Opuscoli teologico-spirituali, Roma 1976, pág. 64).

Apresentando a oração do Pai-Nosso, São Tomás mostra que ela é em si mesma perfeita, pois possui as cinco características que uma oração bem recitada deveria possuir: abandono confiante e tranquilo: conveniência do seu conteúdo, porque observa São Tomás "é assaz difícil saber precisamente o que é oportuno pedir e o que não o é, a partir do momento que nos sentimos em dificuldade diante da selecção dos desejos" (Ibid., pág. 120); e além disso, ordem apropriada dos pedidos, fervor de caridade e sinceridade da humildade.

Como todos os santos, também São Tomás foi um grande devoto de Nossa Senhora. Ele definiu-a com um apelativo maravilhoso: Triclinium totius Trinitatis, triclínio, ou seja, lugar onde a Trindade encontra o seu descanso porque, em virtude da Encarnação, em nenhuma criatura como nela as três Pessoas divinas habitam e sentem a delícia e a alegria por viver na sua alma cheia de Graça. Pela sua intercessão, nós podemos obter todo o auxílio.

Com uma oração, que tradicionalmente é atribuída a São Tomás e que, de qualquer maneira, reflete os elementos da sua profunda devoção mariana, digamos nós também: "Ó bem-aventurada e doce Virgem Maria, Mãe de Deus... confio ao teu Coração misericordioso toda a minha vida... Obtém-me, ó minha doce Senhora, verdadeira caridade, com a qual eu possa amar de todo o coração o teu santíssimo Filho e a Ti, depois dele, acima de todas as coisas, e o próximo em Deus e por Deus".

domingo, 21 de novembro de 2010

Catecismo IV - Prólogo (IV- Estrutura deste Catecismo)


O estudo de hoje deverá tratar da quarta parte do Prólogo do Catecismo da Igreja Católica. Já vimos nos estudos anteriores acerca da importância do catecismo na vida da Igreja desde os tempos primitivos. Percebemos o quanto é importante um estudo sólido e sistemático dos principais pontos da fé.

Contudo, após termos aprendido que todo cristão deve estudar e compreender mais acerca de sua própria fé, estamos aptos a avançar uma nova pergunta: como estudar a fé? Qual ordem devemos seguir? Existe alguma tradição em relação aos temas a serem estudados pelos cristão?

Em seu décimo terceiro parágrafo, o Catecismo nos comunica que:
O plano deste Catecismo inspira-se na grande tradição dos catecismos que articulam a catequese cm torno de quatro "pilares": a profissão da fé batismal (Símbolo), os sacramentos da fé, a vida da fé (Mandamentos) e  a oração do crente (o Pai Nosso).
Portanto, não basta apenas apresentar as verdades da Fé, mas sim apresentá-las dentro de uma determinada ordem, para que a compreensão destas verdades fiquem claras e bem fundamentadas.

Primeiramente deve-se estudar os ítens que são proclamados no Credo (também conhecido como Símbolo dos Apóstolos, ou Símbolo Apostólico). Seguramente, muitos de nossos leitores sabem de cor o Credo, mas será que entendem o que estão dizendo quando recitam o Credo durante a Missa? Todas as explicações sobre cada termo do Credo serão dadas na primeira parte do Catecismo.

(Uma singela observação. Na Igreja primitva, os catecúmenos, por ocasião do batismo, deviam emitir a profissão de fé, a qual lhes tinha servido de base para a sua instrução. E no que consistia tal profissão? Esta continha os pontos principais da fé cristã que haviam sido transmitidos desde os tempos dos Apóstolos, por isso, Ireneu e Tertuliano a chamavam de "regra de fé" ou "regra da verdade"; mais tarde, passou-se a utilizar o nome "Símbolo", e, atualmente, também se utiliza o termo "Credo". Vemos, pois, que as verdades contidas no "Credo", nos foram transmitidas pelos apóstolos e guardadas pela Sagrada Tradição da Igreja. É este Símbolo dos Apóstolos, ao qual estamos tão acostumados, que servirá de base para todos os outros símbolos ocidentais. Vamos, ao longo de nosso estudo, aprender a reconhecer o valor e o significado de cada uma das proposíções do Credo).

Em segundo lugar, devemos ter consciência acerca dos sacramentos. Afinal, o que são os sacramentos? Quantos são? Quem os instituiu? Qual a importância deles? São eles realmente necessários? Todas as respostas acerca da vida sacramental do cristão são dadas na segunda parte do catecismo.

A seguir, estudam-se os Dez Mandamentos. Quais são os Dez Mandamentos? Será que Cristo aboliu a Antiga Lei Mosaica? Como cuidar para não infringir as Leis estatuídas pelo próprio Deus?  Deste tema ocupar-se-á a terceira parte do Catecismo.

E, por fim, analisa-se o Pai Nosso, a oração que Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensinou. O que significa cada uma das petições feitas ao longo do Pai Nosso? Qual a importância do que é dito no Pai Nosso para a vida cristã? Do Pai Nosso o Catecismo tratará em sua quarta parte.

Contudo, como cada parte trata de temas amplos e complexos, um estudo ininterrupto pode tornar confusa a compreensão daquilo que está sendo explicado. Para sanar este problema, cada parte do Catecismo foi subdividida em "seções", desta maneira o estudo torna-se mais fácil de ser assimilado.

Nos parágrafos seguintes, o próprio Catecismo faz um breve apanhado acerca de cada uma de suas partes.

Vejamos:
PRIMEIRA PARTE: A PROFISSÃO DA FÉ
Aqueles que, pela fé e pelo Batismo, pertencem a Cristo, devem confessar a sua fé batismal diante dos homens (Mt 10, 23; Rm 10, 9). Por isso, o Catecismo começa por expor em que consiste a Revelação, pela qual Deus Se dirige e Se dá ao homem, e a fé pela qual o homem responde a Deus (Primeira Seção). O Símbolo da fé resume os dons que Deus faz ao homem, como Autor de todo o bem, Redentor e Santificador, e articula-os em volta dos "três capítulos" do nosso Batismo – a fé num só Deus: o Pai Todo-poderoso, Criador; e o seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador: e o Espírito Santo, na Santa Igreja (Segunda Seção).
SEGUNDA PARTE: OS SACRAMENTOS DA FÉ
A segunda parte do Catecismo expõe como a salvação de Deus, realizada uma vez por todas por Jesus Cristo e pelo Espírito Santo, se toma presente nas acções sagradas da liturgia da Igreja(Primeira Seção), e em especial nos sete sacramentos (Segunda Seção).

TERCEIRA PARTE: A VIDA DA FÉ
A terceira parte do Catecismo apresenta o fim último do homem, criado à imagem de Deus – a bem-aventurança e os caminhos para a ela chegar: um comportamento reto e livre, com a ajuda da lei de Deus e da sua graça (Primeira Seção); um comportamento que realize o duplo mandamento da caridade, explicitado nos dez Mandamentos de Deus (Segunda Seção).

QUARTA PARTE: A ORAÇÃO NA VIDA DA FÉ
A última parte do Catecismo trata do sentido e da importância da oração na vida dos crentes(Primeira Seção), terminando com um breve comentário aos sete pedidos da Oração do Senhor(Segunda Seção). De fato, nesses sete pedidos encontramos a suma dos bens que devemos esperar e que o nosso Pai dos Céus nos quer dar.
Por hoje ficamos por aqui.

Pax Domini Sit Semper Vobiscum

William Bottazzini

sábado, 20 de novembro de 2010

Os "Irmãos" de Jesus


Uma das maiores blasfêmias proferidas pelos que estão fora da comunhão com a Igreja é aquela que tenta derrubar a dignidade de Nossa Senhora. Recusam a aceitar a virgindade perpétua de Maria baseados em leituras enviesadas das Sagradas Escrituras.

Compartilho com todos um Texto extraído da obra ´"Legítima Interpretação da Bíblia" de Lúcio Navarro sobre os "irmãos" de Jesus.
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Diante da frase de S. Mateus vista no número anterior, o leitor ainda poderá compreender como se tenham equivocado os protestantes, iludindo-se com as aparências.

Mas agora vai pasmar ao ver a malícia, a precipitação com que esses enfatuados intérpretes da Bíblia que a lêem continuamente e procuram aprendê-la de cor, ainda vão tirar da expressão irmãos de jesus uma conclusão contra a virgindade perpétua do Maria Santíssima. Senão, vejamos.

Sabemos que a Escritura não somente designa com o nome de Irmãos aquêles que são filhos do mesmo pai ou da mesma mãe, como eram Caim e Abel, Esaú e Jacó, S. Tiago Maior e S. João Evangelista (que eram filhos de Zebedeu) etc.; mas também aqueles que são parentes próximos, como tios e primos. - A Escritura está cheia destes exemplos.

Abraão chama de Irmão a Lot: "Peço-te que não haja rinhas entre mim e ti, nem entre os meus pastores e os teus, porque somos irmÃos (Gênesis, XIII-8). Mais adiante a própria Bíblia o chama assim: "Abraão, tendo ouvido que Lot, seu irmão, ficara prisioneiro... (Gênesis XIV-14). Pois bem,  "Lot era apenas sobrinho de Abraão, pois já antes disto se lê no Gênesis: "Tinha Abraão setenta e cinco anos, quando saiu de Harã. E ele levou consigo a Sarai, sua mulher, a Lot, filho de seu irmão, e todos os bens que possuíam (Gênesis XII-4 e 5).

Labão, diz a Jacó: "Acaso, porque tu és meu irmão, deves tu servir-me de graça ?  (Gênesis XXIX-15). E no entanto Jacó era sobrinho de Labão:Isaac chamou a Jacó e o abençoou e lhe pôs pôr preceito dizendo: "Não tomes mulher da geração de Canaã; mas vai e parte para a Mesopotimia ... e desposa-te com uma das filhas de Labão, TEU TIO"" (Gênesis, XXVIII -l e 2). Realmente Jacó era filho de Isaac com Rebeca (Gênesis XXV, 21 a 25) e Rebeca era irmã de Labão: "Rebeca, porém,  tinha um  irmão chamado Labão (Gênesis, XXIV-29). E, no entanto, não só como vimos acima, seu tio o chama irmão, mas também quando Jacó se encontra com Raquel, que é filha de Labão (Gênesis XXIX-5 e 6), diz à moça que é irmão de Labão: "E lhe manifestou que era irmão de seu pai, filho de Rebeca (Gênesis XXIX-12).

Lê-se no Levítico que Nadab e Abiu, filhos de Arão (Levítico X-1) são mortos pôr castigo, pôr terem oferecido um fogo estranho nos seus turíbulos. Moisés chama os primos dos que faleceram: Misael e Elisafan, filhos de Oziel, tio de arão (Levítico X-4) e lhes diz: ide, tirai vossos irmãos de diante do santuário e levai-os para fora do campo (Levítico X-4).

Lê-se no livro de Paralipômenos que Eleazar e Cis são filhos de Moholi: "filhos de moholi: Eleasar e Cis"(I Paralipômenos XXIII-21), portanto Irmãos no verdadeiro sentido da palavra. Eleazar só teve filhas e não filhos; as filhas dele se casaram com os filhos de Cis. Espera-se que a Escritura diga: casaram-se com os filhos de Cis, que eram seus primos; mas ela diz: com os filhos de Cis, seus irmãos: "E Eleazar morreu e não teve filhos, senão filhas; e casaram com os filhos de Cis, seus irmãos (I Paralipômenos, XXIII-22).

É dentro deste costume hebreu de designar com o nome de irmãos, não só os que têm os mesmos pais, senão também os parentes próximos como tios, primos e sobrinhos, pois o hebraico não possuía palavras próprias para designar esses parentescos, que o Novo Testamento fala em irmãos de jesus e é o próprio Novo Testamento  QUE SE ENCARREGA DE. DEMONSTRÁ-LO.

Querem ter a prova  nossos amigos protestantes?

Dá alguma vez o Evangelho os nomes desses irmãos de Jesus, para que possamos identificá-los?

Sim, dá. Sabe-se dos nomes, pelo menos de 4: Tiago, José, Judas e Simão: "Não é este o oficial, filho de Maria, irmão de tiago, de José, de judas e de simao? Não vivem aqui entre nos também suas  irmãs ? (Marcos, I-3). "Porventura não é este o filho do oficial ? Não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos tiago,  josé, simao e judas? E suas irmãs não vivem elas todas entre nós?  (Mateus, XIII-55 e 56).

Pois bem, este tiago que encabeça a lista é um Apóstolo, pois diz S. Paulo na Epístola aos Gálatas: "E dos outros apóstolos não vi a nenhum, senão a tiago, irmão do SENHOR (Gálatas, 1-19).

Quer dizer então que, segundo a opinião desses protestantes, este Tiago Apóstolo era filho de Maria, mãe de Jesus; e de Maria e de José, porque, como os próprios protestantes reconhecem, Maria nunca teve filhos antes de seu casamento com José. E não se casou com outro depois da morte de José, pois na hora da morte de Cristo, ela está sozinha, sem marido e Cristo a entrega a S. João Evangelista; além disto se Maria tivesse casado outra vez, seus filhos estariam pequenos, não estariam em idade de ser Apóstolos.

Temos 2 Apóstolos com o nome de Tiago: Tiago Maior, e Tiago Menor. Vamos ver se algum deles era filho de José com Maria.

S. Tiago Maior era irmão de S. João Evangelista, e ambos FILHOS  DE  ZEBEDEU: "Da mesma sorte havia deixado atônitos a tiago e a JOÃO, filhos dE zebedeu (Lucas V-10).

S. Tiago Menor, que era irmão de Judas, era filho de ALFEU. Entre os Apóstolos, que são enumerados pôr S. Mateus, estão: Tiago FILHO DE ZEBEDEU, e Tiago filho de  ALFEU (Mateus X-3). Que tem a ver Maria Santíssima com este Alfeu ou com este Zebedeu? Logo, este Tiago, IRMÃO DO SENHOR, não é seu filho.

Além disto, comparando-se os Evangelhos, se vê claramente que este Tiago « este José que encabeçam a lista são PRIMOS de Jesus»,  e o Tiago é o Apóstolo Tiago Menor. Enumerando as mulheres que estavam juntamente com Maria ao pé da cruz, Mateus, Marcos e João as identificam da seguinte maneira:

 Mateus XXVII- 56 : Maria, mãe de Tiago e de José;   Maria Madalena;  a mãe dos filhos de Zebedeu.                      

Marcos XV - 40:  Maria, mãe de Tiago Menor e de José; Maria Madalena; Salomé.                       

João XIX - 25: a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cleofas; Maria Madalena.

Por aí se vê que a mesma Maria que é apresentada por São João como tia de Jesus (Irmã de sua mãe) é apresentada por São Mateus e S. Marcos como mãe de TIAGO MENOR  e de José. E é claro que não se trata de Maria Salomé, que é a mãe dos filhos de Zebedeu e, portanto, é mãe de Tiago Maior.

Tiago Menor e José são, portanto, PRIMOS de Jesus e são os primeiros que. encabeçam aquela lista:

TIAGO, JOSÉ, JUDAS E SIMÃO

E de fato o Apóstolo S. Judas Tadeu era irmão de S. Tiago Menor, pois ele diz no começo de sua Epístola: "Judas, servo de Jesus Cristo e IRMÃO  de Tiago (vers. l.). Tanto o Evangelho de S. Lucas (VI-16) como os Atos dos Apóstolos (1-13) para diferenciarem Judas Tadeu de Judas Iscariotes, chamam a Judas Tadeu: Judas, irmão de Tiago.

E assim cai pôr terra fragorosamente a alegação dos protestantes de que Maria teve outros filhos além do Divino Salvador, alegação baseada em que o Evangelho fala em irmãos de jesus. Não só provamos que entre os hebreus se chamavam IRMÃOS os parentes próximos, mas também mostramos que a lista dos nomes apresentados como sendo destes IRMÃOS  é logo encabeçada pôr dois PRIMOS, filhos da irmã da mãe de Jesus. Logo, não tem nenhum valor a alegação.

A única dificuldade, esta agora já sem importância, que pode fazer o protestante é que Tiago Menor é filho de ALFEU, e sua mãe é apresentada COMO MULHER DE CLEOFAS.

Sem precisar recorrer a nenhum argumento de tradição (porque talvez os protestantes não gostem disto) temos que observar o seguinte:

l.° — o texto original não diz MULHER DE CLEOFAS, mas diz simplesmente: a irmã de sua mãe, Miaria, a do Cleofas (texto grego de João XIX-25); podia chamar-se Maria, a do Cleofas, pôr causa do pai ou pôr outro qualquer motivo;

2° — não repugna que a mesma Maria se tenha casado com Alfeu e dele tenha tido S. Tiago Menor, e depois se tenha casado com Cleofas e tido outros filhos ou mesmo deixado de ter. Tiago é o único que é apontado nos Evangelhos como filho deste Alfeu, pois o Alfeu, pai de S. Mateus (Marcos 11-14) já deve ser outro;

3.° — não repugna que o próprio Alfeu seja o mesmo Cleofas. É muito comum nas Escrituras uma pessoa ser conhecida pôr 2 nomes diversos: O sogro de Moisés é chamado Raguel (Êxodo 11-18 a 21) e logo depois é chamado Jetro (Êxodo, III - l). Gedeão, depois de ter derribado o altar de Baal é chamado também Jerobaal (Juizes, VI-32). Osias, rei de Judá, é chamado também Azarias (4 Reis, XV-32; I Paralipômenos, III-12). E no Novo Testamento o mesmo Mateus é chamado Levi: "Viu um homem, que estava assentado no telônio, chamado Mateus (Mateus, IX-9) . "Viu a Levi, filho de Alfeu, assentado no telônio (Marcos, 11-14). O mesmo que é chamado José é chamado Barsabas (Atos, I, 23).

Ainda hoje mesmo, entre nós, nas nossas localidades do interior principalmente, é multo comum esta duplicidade de nomes.

Seja Alfeu o mesmo Cleofas ou não seja. Isto pouco importa. O que é fato é que Maria de Cleofas é Irmã de Maria, mãe de Jesus e é ao mesmo tempo mãe de Tiago e de José, que são chamados IRMÃOS  do Senhor.

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Permitam-me adicionar dois comentários acerca dos "irmãos" de Jesus:

1° Na passagem de Nosso Senhor no Templo aos doze anos (Lucas II, 42), nada  se fala acerca de quaisquer "irmãos" de Jesus. Ora, como poderiam Maria e José fazer uma viagem a Jerusalém, como o fizeram, e deixar vários filhos pequenos para trás? Onde os deixariam? Neste caso, não deveria São Lucas mencionar nada?

2° É curioso notar que apenas se fala dos "irmãos" de Jesus quando Ele já estava atuando em sua vida pública, ou seja, Nosso Senhor já contava com mais de 30 anos. Contudo, quando Cristo estava cravado no madeiro, ele confiou Sua mãe ao apóstolo São João (João XIX 26 - 27). Ora, se Jesus tinha mais irmãos, por que Ele confiaria a Sua mãe a alguém de fora da família? O texto ainda menciona que João a levou para casa dele. Mas, se Nossa Senhora tinha outros filhos, não seria mais que natural ela ir viver sob a proteção de um deles?

Sei que muitos ainda podem questionar acerca do uso das palavras "até que", "enquanto" e "antes de coabitarem" utilizadas por São Mateus em seu Evangelho. Sobre este tema escreverei em outra ocasião.

Pax Domini Sit Semper Vobiscum

William Bottazzini

São João Crisóstomo: A Cruz é o Símbolo do Reino


Deixo, para meditação, um texto de São João Crisóstomo a respeito da Cruz e do Reino.

Não há muito o que comentar, este belíssimo texto do século V fala por si mesmo.

Pax Domini Sit Semper Vobiscum

William
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Das Homilias de São João Crisóstomo, bispo
(Hom. 1 de cruce et latrone, 3-4: PG 49, 403-404)
A cruz é o símbolo do reino.
         Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reino (Lc 23,  42). O ladrão não teve coragem de dizê-lo antes de ter deposto, pela confissão, a carga dos pecados. Vês como é poderosa a confissão? Confessou e o paraíso se abriu para ele. Confessou e recebeu tal confiança que, embora sendo um ladrão, ousou pedir o reino.
Vês quantos benefícios nos proporcionou a cruz? Pedes o reino, e o que vês? Tens diante de ti os cravos e a cruz. Mas a cruz é precisamente o símbolo do reino. Por isso, invoco o próprio Rei; porque o vejo crucificado. Pois o Rei deve morrer pelos seus súditos. Ele mesmo disse: O bom Pastor dá a vida por suas ovelhas (Jo 10, 11). Portanto, o bom Rei também dá a vida pelos seus súditos. E justamente porque ele dá a sua vida, eu o invoco: Lembra-te de mim no teu reino.
         Vês, pois, que a cruz é o símbolo do reino? Queres aprender isto de outra maneira? O Senhor não a deixou na terra, mas ergueu-a e levou-a consigo para o céu. Onde está revelado isto? É porque ele deverá vir com este sinal na sua segunda e gloriosa vinda, a fim de compreenderes como a cruz é digna de honra; por este motivo chamou-a também sua glória. 
Mas, vejamos de que modo ele vem com a cruz. Convém explicá-lo com clareza. Se vos disserem: ‘Cristo está nos esconderijos’; ele está no deserto’, não andeis até lá (cf. Mt 24, 26). Jesus falava assim da sua segunda vinda, na glória, para que ninguém fosse seduzido por falsos cristos, por falsos profetas ou pelo Anticristo.
         Na verdade, antes do Cristo virá o Anticristo; por isso, dou-te o sinal da vinda do Pastor, a fim de que ninguém caia nas garras do lobo, ao procurar o Pastor.
         Ele te deixou um sinal, para que não penses que a sua vinda será às escondidas, como foi a primeira. A primeira vinda foi oculta, porque ele viera procurar o que estava perdido. Na segunda, não será assim. Como será? Como de repente o relâmpago sai do Oriente e reluz até o Poente, assim será a vinda do Filho do Homem (Mt 24, 27). Todos o veremos e ninguém terá que procurar se ele está aqui ou ali. Assim quando brilha o relâmpago ninguém precisa perguntar se já apareceu, igualmente acontecerá com a vinda de Cristo; não teremos necessidade de perguntar se ele já veio.
         Mas como havíamos prometido, respondamos à pergunta se virá com a cruz. Escuta o que disse: Então. Mas quando exatamente? Quando vier o Filho do homem, o sol ficará escuro, a lua perderá sua claridade (Mt 24, 29). Será bem grande a intensidade daquela luz, a ponto de obscurecer os astros mais luminosos. Então as estrelas cairão, então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem (Mt 24, 29.30). Vês, pois, o poder do sinal da cruz? Assim como à entrada de um rei na cidade, os soldados o precedem carregando as suas insígnias para anunciar sua chegada, quando o Senhor descer dos céus, os exércitos dos anjos e dos arcanjos o precederão trazendo aquele glorioso estandarte e, desse modo, nos anunciarão seu ingresso real.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Um pouco de Santo Agostinho


Compartilho com todos esta bela homilia de Santo Agostinho sobre o salmo 95.

Para que nossa fé seja cada vez mais cristalina , devemos beber nas fontes da patrística. Esta é a base sólida onde fora construído o edifício da nossa fé.

Todos os destaques pertencem ao próprio texto.

Agradeço a Dom Bento por ter cedido este belo texto.

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Dos Comentários sobre os Salmos, de Santo Agostinho, bispo.
Enarratio super Psalmum 95, 14-15 (Corpus Christianorum Latinorum 39, 1351-1353)

Não ofereçamos resistência a sua primeira vinda, para não termos de recear a segunda
               Exultem as florestas e as matas na presença do Senhor, pois ele vem, porque vem para julgar a terra inteira (Sl 95 [96], 12-13). Veio a primeira vez e virá de novo. Na sua primeira vinda pronunciou esta palavra que lemos no evangelho: De agora em diante vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens do céu (Mt 26, 64). Que significa de agora em diante? Não quer dizer, porventura, que o Senhor deve vir desde agora e não depois, quando todos os povos da terra haverão de chorar? De fato, ele veio primeiramente através dos seus pregadores e encheu a terra. Não ofereçamos resistência a sua primeira vinda, para não termos de recear a segunda.
               Que deve fazer o cristão? Servir-se do mundo, não servir o mundo. Que significa isto? Ter como se não tivéssemos. Assim fala o Apóstolo: Eu digo, irmãos: o tempo abreviou-se. Então, que, doravante, os que têm mulher vivam como se não tivessem mulher;  os que choram, como se não chorassem, e os que estão alegres, como se não estivessem alegres; os que fazem compras, como se não estivessem adquirindo coisa alguma, e os que se aproveitam do mundo, como se dele não tirassem proveito. Pois a figura deste mundo passa. Eu gostaria que estivésseis livres de preocupações (1Cor 7, 29-32).
               Quem não está preocupado, espera tranqüilamente a vinda do seu Senhor. Na verdade, que espécie de amor a Cristo terá aquele que teme a sua vinda? Não temos vergonha, irmãos? Nós o amamos e temos medo de sua vinda! Mas será que realmente o amamos ou não será que amamos antes os nossos pecados? Se odiarmos o pecado, amaremos certamente aquele que vem castigar o pecado. Ele virá, quer queiramos quer não; o fato de não vir agora não quer dizer que não virá. Virá, e não sabes quando; se te encontrar preparado, nada te prejudica não saberes quando virá.
                Exultem as florestas e as matas. Veio a primeira vez, e virá de novo para julgar a terra; e encontrará cheios de alegria os que acreditaram na sua primeira vinda, porque ele vem.
               Julgará o mundo todo com justiça e os povos com eqüidade (Sl 95 [96], 13). Qual é esta justiça e esta eqüidade? Reunirá junto de si os seus eleitos para proceder ao juízo; e separará os outros: colocará uns à direita e outros à esquerda. Que há de mais conforme à justiça e à eqüidade, que não esperem misericórdia do juiz aqueles que não quiseram praticar a misericórdia antes da vinda do juiz? Os que usaram de misericórdia serão julgados com misericórdia. Dirá Cristo aos que forem colocados à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Recebei o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! (cf. Mt 25, 34). E serão recordadas as suas obras de misericórdia: Estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de beber (Mt 25, 35), e o que segue.
               E de que serão acusados os que forem colocados à sua esquerda? De não terem usado de misericórdia. E para onde irão? Para o fogo eterno (Mt 25, 41). Esta má notícia provocará enorme pranto. Mas que diz outro salmo? A lembrança do justo permanece eternamente! Ele não teme receber notícias más (Sl 111 [112], 6-7). Qual é a má notícia? Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos (Mt 25, 41). Quem se alegrar com a boa notícia, não receberá a notícia má. Aqui está a justiça e aqui está a eqüidade.
               Ou será que, por seres injusto, o juiz não é justo? Ou por seres infiel, a fidelidade não é fiel? Ora, se desejas que ele seja misericordioso para contigo, sê tu misericordioso antes que ele venha. Perdoa a quem te ofendeu. Dá do que tens em abundância. De quem é o que dás, senão dele? Se desses do que era teu, seria liberalidade; mas porque dás do que é dele, é uma restituição. Que tens que não tenhas recebido? (1Cor 4, 7).
               São estes os sacrifícios mais agradáveis a Deus: a misericórdia, a humildade, o louvor, a paz, a caridade. Apresentemos estas ofertas e esperaremos com segurança a vinda do juiz, que julgará o mundo todo com justiça e os povos com eqüidade.

São Tomás de Aquino - 2ª Parte



Publico a seguir a segunda das três catequeses proferidas pelo Sumo Pontífice, o Papa Bento XVI, acerca de São Tomás de Aquino.

Todos os negritos são meus.
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Estimados irmãos e irmãs!

Hoje gostaria de continuar a apresentação de São Tomás de Aquino, um teólogo de valor tão grande que o estudo do seu pensamento foi explicitamente recomendado pelo Concílio Vaticano II em dois documentos, o decreto Optatam totius, sobre a formação para o sacerdócio, e a declaração Gravissimum educationis, que fala a respeito da educação cristã. De resto, já em 1880 o Papa Leão XIII, seu grande apreciador e promotor de estudos tomistas, quis declarar São Tomás Padroeiro das Escolas e das Universidades católicas.

O motivo principal deste apreço reside não só no conteúdo do seu ensinamento, mas também no método por ele adotado, sobretudo a sua nova síntese e distinção entre filosofia e teologia. Os Padres da Igreja encontravam-se confrontados com várias filosofias de tipo platônico, nas quais se apresentava uma visão completa do mundo e da vida, incluindo a questão de Deus e da religião. No confronto com estas filosofias, eles mesmos tinham elaborado uma visão completa da realidade, começando a partir da fé e utilizando elementos do platonismo, para responder às interrogações essenciais dos homens. Esta visão, assente na revelação bíblica e elaborada com um platonismo correto à luz da fé, era por eles denominada a "nossa filosofia". Portanto, a palavra "filosofia" não era expressão de um sistema puramente racional e, como tal, distinto da fé, mas indicava uma visão global da realidade, construída à luz da fé, mas tornada própria e pensada pela razão; uma visão que, sem dúvida, ia além das capacidades próprias da razão mas que, como tal, era também satisfatória para ela. Para São Tomás de Aquino, o encontro com a filosofia pré-cristã de Aristóteles (falecido por volta de 322 a.c.) abria uma nova perspectiva. A filosofia aristotélica era, obviamente, uma filosofia elaborada sem conhecimento do Antigo e do Novo Testamento, uma explicação do mundo sem revelação, unicamente pela razão. E esta racionalidade consequente era convincente. Assim, a antiga forma da "nossa filosofia" dos Padres já não funcionava. A relação entre filosofia e teologia, entre fé e razão, devia ser reconsiderada. Existia uma "filosofia" completa e convincente em si mesma, uma racionalidade precedente à fé, e depois a "teologia", um pensar com a fé e na fé. A questão urgente era esta: o mundo da racionalidade, a filosofia pensada sem Cristo e o mundo da fé são compatíveis? Ou então excluem-se? Não faltavam elementos que afirmavam a incompatibilidade entre os dois mundos, mas São Tomás estava firmemente convencido da sua compatibilidade aliás, que a filosofia elaborada sem o conhecimento de Cristo praticamente esperava a luz de Jesus para ser completa. Esta foi a grande "surpresa" de São Tomás, que determinou o seu caminho de pensador. Mostrar esta independência de filosofia e teologia e, ao mesmo tempo, a sua relacionalidade recíproca, foi a missão histórica do grande mestre. E assim compreende-se porque no século XIX, quando se declarava fortemente a incompatibilidade entre razão moderna e fé, o Papa Leão XIII indicou São Tomás como guia no diálogo entre uma e outra. No seu trabalho teológico, São Tomás supõe e concretiza esta relacionalidade. A fé consolida, integra e ilumina o património de verdade que a razão humana adquire. A confiança que São Tomás concede a estes dois instrumentos do conhecimento – a fé e a razão – pode ser reconduzida à convicção de que ambas derivam da única nascente de toda a verdade, o Logos divino que age tanto no âmbito da criação, como no contexto da redenção.

Além do acordo entre razão e fé, deve-se reconhecer, por outro lado, que elas se valem de procedimentos cognoscitivos diferentes. A razão acolhe uma verdade em virtude da sua evidência intrínseca, mediata ou imediata; a fé, ao contrário, aceita uma verdade com base na autoridade da Palavra de Deus que se revela. São Tomás escreve no início da sua Summa Theologiae: "É dúplice a ordem das ciências; algumas procedem de princípios conhecidos mediante a luz natural da razão, como a matemática, a geometria e semelhantes; outras procedem de princípios conhecidos através de uma ciência superior: como a perspectiva procede de princípios conhecidos mediante a geometria, e a música de princípios conhecidos através da matemática. E deste modo, a doutrina sagrada (ou seja, a teologia) é ciência porque procede dos princípios conhecidos através da luz de uma ciência superior, isto é, a ciência de Deus e dos Santos" (I, q. 1, a. 2).

Esta distinção assegura a autonomia, tanto das ciências humanas como das ciências teológicas. Porém, ela não equivale à separação, mas implica sobretudo uma colaboração recíproca e vantajosa. Com efeito, a fé protege a razão de toda a tentação de desconfiança nas próprias capacidades, estimula-a a abrir-se a horizontes mais vastos, mantém viva nela a busca dos fundamentos e, quando a própria razão se aplica à esfera sobrenatural da relação entre Deus e homem, enriquece o seu trabalho. Segundo São Tomás, por exemplo, a razão humana pode chegar indubitavelmente à afirmação da existência de um único Deus, mas só a fé, que acolhe a Revelação divina, é capaz de haurir do mistério do Amor de Deus Uno e Trino.

Por outro lado, não é apenas a fé que ajuda a razão. Também a razão, com os seus meios, pode fazer algo de importante para a fé, prestando-lhe um tríplice serviço, que São Tomás resume no proêmio do seu comentário ao De Trinitate, de Boécio: "Demonstrar os fundamentos da fé; explicar mediante semelhanças as verdades da fé; rejeitar as objecções que se levantam contra a fé" (q. 2, a. 2). Toda a história da teologia é, no fundo, o exercício deste compromisso da inteligência, que mostra a inteligibilidade da fé, a sua articulação e harmonia interna, o seu bom senso e a sua capacidade de promover o bem do homem. A exatidão dos raciocínios teológicos e o seu significado cognoscitivo real fundamentam-se no valor da linguagem teológica que, segundo São Tomás, é principalmente uma linguagem analógica. A distância entre Deus, o Criador e o ser das suas criaturas é infinita; a dessemelhança é sempre maior do que a semelhança (cf. DS 806). Não obstante, em toda a diferença entre Criador e criatura, existe uma analogia entre o ser criado e o ser do Criador, que nos permite falar sobre Deus com palavras humanas.

São Tomás fundou a doutrina da analogia sobre argumentações puramente filosóficas, e também sobre o facto de que, com a Revelação, foi o próprio Deus quem nos falou e, portanto, nos autorizou a falar dele. Considero importante evocar esta doutrina. Com efeito, ela ajuda-nos a superar algumas objeções do ateísmo contemporâneo, o qual nega que a linguagem religiosa possui um significado objetivo, e afirma ao contrário que só tem um valor subjetivo, ou simplesmente emotivo. Esta objeção deriva do facto que o pensamento positivista está convencido de que o homem não conhece o ser, mas somente as funções experimentáveis da realidade. Com São Tomás e com a grande tradição filosófica, estamos persuadidos de que, na realidade, o homem não conhece apenas as funções, objeto das ciências naturais, mas conhece algo do próprio ser por exemplo, conhece a pessoa, o Tu do outro, e não apenas o aspecto físico e biológico do seu ser.

À luz deste ensinamento de São Tomás, a teologia afirma que, por mais limitada que seja, a linguagem religiosa é dotada de sentido – porque nos referimos ao ser – como uma seta que se dirige rumo à realidade que ela significa. Este acordo fundamental entre razão humana e fé cristã entrevê-se num outro princípio basilar do pensamento do Aquinate: a Graça divina não anula, mas supõe e aperfeiçoa a natureza humana. Com efeito, esta última, mesmo depois do pecado, não é completamente corrupta, mas ferida e debilitada. A Graça, concedida por Deus e comunicada através do Mistério do Verbo encarnado, é uma dádiva absolutamente gratuita com que a natureza é curada, fortalecida e ajudada a perseguir o desejo inato no coração de cada homem e de cada mulher: a felicidade. Todas as faculdades do ser humano são purificadas, transformadas e elevadas pela Graça divina.

Reconhece-se uma aplicação importante desta relação entre a natureza e a Graça na teologia moral de São Tomás de Aquino, que é de grande atualidade. No centro do seu ensinamento neste campo, ele insere a lei nova, que é a lei do Espírito Santo. Com um olhar profundamente evangélico, insiste sobre o fato de que esta lei é a Graça do Espírito Santo, concedida a todos aqueles que acreditam em Cristo. A tal Graça une-se o ensinamento escrito e oral das verdades doutrinais e morais, transmitido pela Igreja. Sublinhando o papel fundamental, na vida moral, da ação do Espírito Santo, da Graça, da qual brotam as virtudes teologais e morais, São Tomás faz compreender que cada cristão pode alcançar as elevadas perspectivas do "Sermão da Montanha", se viver uma autêntica relação de fé em Cristo, se se abrir à ação do seu Espírito Santo. Porém – acrescenta o Aquinate – "embora a Graça seja mais eficaz do que a natureza, todavia a natureza é mais essencial para o homem" (Summa Theologiae, I-II, q. 94, a. 6, ad 2), pelo que, na perspectiva moral cristã existe um espaço para a razão, que é capaz de discernir a lei moral natural. A razão pode reconhecê-la, considerando o que é bom fazer e o que é bom evitar, para a consecução daquela felicidade que está a peito de cada um, e que impõe uma responsabilidade para com os demais e, portanto, a busca do bem comum. Em síntese, as virtudes do homem, teologais e morais, estão arraigadas na natureza humana. A Graça divina acompanha, sustém e incentiva o compromisso ético mas, por si só, segundo São Tomás, todos os homens, crentes e não-crentes, são chamados a reconhecer as exigências da natureza humana e a inspirar-se nela na formulação das leis positivas, ou seja, daquelas que são emanadas pelas autoridades civis e políticas para regular a convivência humana.

Quando a lei natural e a responsabilidade que ela implica são negadas, abre-se dramaticamente o caminho ao relativismo ético no plano individual e ao totalitarismo do Estado a nível político. A defesa dos direitos universais do homem e a afirmação do valor absoluto da dignidade da pessoa postulam um fundamento. Não é precisamente a lei natural, este fundamento com os valores não negociáveis que ela indica? O Venerável João Paulo II escrevia na sua Encíclica Evangelium vitae palavras que permanecem de grande atualidade: "Para o bem do futuro da sociedade e do progresso de uma democracia sadia, urge pois redescobrir a existência de valores humanos e morais essenciais e naturais, que derivam da própria verdade do ser humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum indivíduo, nenhuma maioria e nenhum estado jamais poderá criar, modificar ou destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e promover" (n. 71).

Concluindo, São Tomás propõe-nos um conceito amplo e confiante da razão humana: amplo, porque não está limitado aos espaços da chamada razão empírito-científica, mas aberto a todo o ser e por conseguinte também às questões fundamentais e irrenunciáveis do viver humano; e confiante, porque a razão humana, sobretudo se acolhe as aspirações da fé cristã, é promotora de uma civilização que reconhece a dignidade da pessoa, a intangibilidade dos seus direitos e a improrrogabilidade dos seus deveres. Não surpreende que a doutrina acerca da dignidade da pessoa, fundamental para o reconhecimento da inviolabilidade dos direitos do homem, tenha amadurecido em ambientes de pensamento que recolheram a herança de São Tomás de Aquino, que tinha um conceito extremamente elevado da criatura humana. Definiu-a, com a sua linguagem rigorosamente filosófica, como "aquilo que de mais perfeito se encontra em toda a natureza, ou seja, um sujeito subsistente numa natureza racional" (Summa Theologiae, I a, q. 29, a. 3).

A profundidade do pensamento de São Tomás de Aquino brota – nunca o esqueçamos – da sua fé viva e da sua piedade fervorosa, que expressava em orações inspiradas, como esta em que pede a Deus: "Concedei-me, suplico-vos, uma vontade que vos procure, uma sabedoria que vos encontre, uma vida que vos agrade, uma perseverança que vos espere confiadamente e uma confiança que no final chegue a possuir-vos".

domingo, 14 de novembro de 2010

Catecismo III - Prólogo (III - O objetivo e os destinatários deste Catecismo)



Publico hoje a terceira parte de nosso estudo sobre o Catecismo.

Para entendermos bem o catecismo é necessário que se estude com calma e cautela cada um dos parágrafos que o compõem. Ademais, é de fundamental a importância conferir as sugestões de citações que o Catecismo nos oferece para que possamos ter uma visão mais abrangente da doutrina de Cristo.

Vamos então ao terceiro tópico do Prólogo: O objetivo e os destinatários deste Catecismo.

Afinal, para quê um Catecismo?

A palavra catecismo origina-se do grego κατηχισμός (lê-se: katekismós). O substantivo grego katekismós deriva-se do verbo grego κατηχέω (lê-se: katekéo) que significa instruir, ensinar. Assim sendo, o termo catecismo significa, entre outras coisas, instrução. Se quisermos ir mais longe ainda no significado desta palavra perceberemos que κατηχέω  é um vocábulo formado por dois termos: κατά (lê-se: katá), que significa para baixo e ήχέω (lê-se: ékeo) que quer dizer soar. Destarte, o significado literal seria "soar para baixo". Ou seja, é o professor em pé que fala e ensina; de sua boca sai o som que nos instrui. E nós, por outro lado, estamos sentados ouvindo aquilo que nos está sendo ensinado.

Percebemos, pois, que a própria noção de Catecismo implica uma atitude de humildade, de se estar disposto a aprender algo, sobretudo quando este "algo" diz respeito à doutrina de Cristo. É o estar sentado e reconhecer a própria ignorância.

Esta necessidade de uma catequese sistemática que estivesse conforme a dourtrina dos apóstolos já era uma preocupação da Igreja desde os primórdios do cristianismo. Nosso Senhor já tinha ordenado expressamente aos apóstolos (ou seja, à Igreja) que estes deviam ensinar "a todas as nações" (cf. Mt 28, 19). Logo, os apóstolos (e seus sucessores, os bispos) possuem o dever de instruir, ensinar, isto é, catequisar. Quanto a nós, leigos, após termos aprendido a correta doutrina legada pelos apóstolos e mantida pela Tradição, devemos também proclamar a Verdade, mas sem nada acrescentar ou subtrair, apenas repetindo aquilo que aprendemos da Igreja e da Tradição. Por isso precisamos estudar e aprender. Como falaremos do que não conhecemos?

Também o apóstolo São Pedro nos lembra da importância de se conhecer a doutrina deixada por Nosso Senhor:
Estai sempre prontos a responder para vossa defesa a todo aquele que vos pedir a razão de vossa esperança (1 Pd 3, 15).
São Justino Mártir, que viveu durante o século II, afirma em sua Apologia que

Ao passo que muitos são persuadidos e crêem que é verdadeiro aquilo que nós [cristãos] ensinamos e dizemos, e se comprometem a levar uma vida digna, são instruídos a rezar e a pedir a Deus com jejum, para a remissão de seus pecados que ficaram para trás, e nós rezamos e jejumaos com eles (Apol. I, 61).
Em um dos trechos do martírio de Felicidade e Perpétua, de inícios do século III, lemos:
Foram presos os jovens catecúmenos [ou seja, os que recebiam a catequese], Revocato e Felicidade, sua serva e companheira (...).
E ainda, Santo Hipólito, no terceiro século:
Os catecúmenos deverão ouvir a palavra por três anos (Trad. apost. 17).
Portanto, na Igreja primitiva, aqueles que se convertiam à Fé eram instruídos acerca das coisas reveladas por Deus. Isto é fundamental para que se tenha uma fé sólida, para que se possa ser atraído para Deus por inteiro, de mente e coração.

Percebemos, então, que a catequese caminha junto com a Tradição da Igreja, com a mesma Tradição que nos foi legada pelos apóstolos; e se a catequese era importante na Igreja primitiva tambêm deverá sê-lo para os nossos dias e assim será eternamente. Será sempre necessário aprender mais e mais acerca das coisas de Deus.

Embora a técnica tenha evoluído acentuadamente nestes vinte séculos que nos separam dos primeiros cristãos, percebemos que algumas coisas continuam imutáveis, entre elas a necessidade de se falar e de se aprender sobre Cristo. Daí a importância do Catecismo.

No parágrafo 11 o Catecismo da Igreja Católica fala de si mesmo:
A finalidade deste Catecismo é apresentar uma exposição orgânica e sintética dos conteúdos essenciais e fundamentais da doutrina católica, tanto sobre a fé como sobre a moral, à luz do II Concilio do Vaticano e do conjunto da Tradição da Igreja. As suas fontes principais são a Sagrada Escritura, os santos Padres, a liturgia e o Magistério da Igreja. E destina-se a servir "como ponto de referência aos catecismos ou compêndios a publicar nos diversos países".
Ou seja, o Catecismo da Igreja apresentará os fundamentos da Fé cristã de modo orgânico, sistematizado;  ao mesmo tempo, isto será feito de forma sintética, ou seja, os temas não serão abordados de forma exaustiva, mas apenas no que for necessário para a nossa salvação e para a manutenção da sã doutrina. Daí a importância de se conferir as citações para um estudo mais pormenorizado.

Deste parágrafo deduz-se ainda que a fé cristã não possui apenas uma única fonte, mas várias. E é importante que recorramos a todas elas para que tenhamos uma visão cada vez mais completa acerca da fé.

Outro aspecto importante explicitado neste parágrafo é o fato de que toda a catequese que se empreenda em qualquer parte do mundo deve estar de acordo com o que ensina o Catecismo da Igreja Católica. Lembremos que a verdadeira Fé é una.

No parágrafo seguinte, o Catecismo aponta os destinatários deste Catecismo:
Este Catecismo destina-se principalmente aos responsáveis pela catequese, que são em primeiro lugar os bispos, enquanto doutores da fé e pastores da Igreja. É-lhes oferecido como instrumento para o desempenho da sua missão de ensinar o povo de Deus. E, através dos bispos, dirige-se aos redatores de catecismos, aos sacerdotes e aos catequistas. Será também uma leitura útil para todos os outros fiéis cristãos.
Por aqui salienta-se que os bispos são os pastores por excelência da Igreja e é função deles zelar pela integridade da fé, não apenas pela manutenção dela, mas também pela sua propagação. É no bispo que os padres e demais fiéis devem certificar-se acerca da ortodoxia da fé que professam. Entretanto, e isto é lamentável, sabemos de não poucos bispos que possuem pouco zelo na guarda da fé e, em certos casos, até mesmo professam publicamente ensinamentos contrários ao que ensina a Santa Igreja; em situações deste tipo, o fiel deve sempre ater-se ao que ensina a Santa Igreja. E como saber o que a Igreja ensina? Através da leitura e do estudo do Catecismo.

Atenção! Devemos sempre manter uma atitude de obediência para com nossos sacerdotes e sempre rezar por eles.  Apenas estamos desobrigados desta obediência se o ensino deles se afastar daquilo que professa a Santa Igreja e o Magistério. Por exemplo, se um padre ou bispo ensinam doutrinas favoráveis ao aborto e até mesmo incentivam esta prática, daí não devemos concordar com este ensinamento e nem seguir suas instruções neste sentido, pois o ensino da Igreja sobre este assunto é outro. Em um caso similar a este, devemos ficar com o que nos diz a Igreja em seus documentos e no próprio Catecismo. E, supondo que um sacerdote ensinasse algo errado por ignorância, nós leigos podemos, com caridade e em particular, mostrar ao nosso sacerdote os documentos da Igreja que ensinam a doutrina correta sobre um determinado tema do qual o sacerdote em questão parece ter se desviado.

O estudo do Catecismo é um poderoso antídoto contra as falsas doutrinas ensinadas livremente em nossos dias e veiculadas pelos mais diversos meios de comunicação. Ademais, é também um escudo através do qual estamos aptos a defender a nossa fé católica dos constantes ataques que esta sofre.

Pax Domini Sit Semper Vobiscum

William Bottazzini