quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

São Tomás nos ensina sobre a cruz

 

Caríssimos,

Compartilho com vocês esta magistral reflexão do Doctor Angelicus.

Que Deus os abençoe!

William

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Dos Comentários de São Tomás de Aquino, presbítero e Doutor da Igreja.
(Collatio 6 super Credo in Deum) (Sec. XIII).

A cruz, exemplo de todas as virtudes

Que necessidade havia para que o Filho de Deus sofresse por nós? Uma necessidade grande e, por assim dizer, dupla: para remédio contra o pecado e para exemplo do que devemos fazer.

Foi em primeiro lugar um remédio, porque na paixão de Cristo encontramos remédio contra todos os males em que incorremos por causa dos nossos pecados.

Mas não é menor a utilidade que tem como exemplo. Na verdade, a paixão de Cristo é suficiente para orientar toda a nossa vida. Quem quiser viver em perfeição, basta que despreze o que Cristo desprezou na cruz e deseje o que Ele desejou. Nenhum exemplo de virtude está ausente da cruz.

Se queres um exemplo de caridade: Não há maior prova de amor do que dar a vida pelos seus amigos. Assim fez Cristo na cruz. E se Ele deu a vida por nós, não devemos considerar penoso qualquer mal que tenhamos de sofrer por Ele.

Se procuras um exemplo de paciência, encontras na cruz o mais excelente. Reconhece-se uma grande paciência em duas circunstâncias: quando alguém suporta com serenidade grandes sofrimentos, ou quando pode evitar os sofrimentos e não os evita. Ora Cristo suportou na cruz grandes sofrimentos, e com grande serenidade, porque sofrendo não ameaçava; e como ovelha levada ao matadouro, não abriu a boca. É grande portanto a paciência de Cristo na cruz: corramos com paciência a prova que nos é proposta, pondo os olhos em Jesus, autor e consumador da fé, que em lugar da alegria que lhe era proposta suportou a cruz, desprezando-lhe a ignomínia.

Se queres um exemplo de humildade, olha para o crucifixo: Deus quis ser julgado sob Pôncio Pilatos e morrer.

Se procuras um exemplo de obediência, segue Aquele que Se fez obediente ao Pai até à morte: assim como pela desobediência de um só, isto é, Adão, muitos foram constituídos pecadores, assim também pela obediência de um só muitos serão justificados.

Se queres um exemplo de desprezo pelas honras da terra, segue Aquele que é Rei dos reis e Senhor dos senhores, no qual se encontram todos os tesouros de sabedoria e de ciência e que na cruz está despojado dos seus vestidos, escarnecido, cuspido, espancado, coroado de espinhos e dessedentado com fel e vinagre.

Não te preocupes com trajes e riquezas, porque repartiram entre si as minhas vestes; nem com as honras, porque troçaram de Mim e Me bateram; nem com as dignidades, porque teceram uma coroa de espinhos e puseram-Ma sobre a cabeça; nem com os prazeres, porque para a minha sede Me deram vinagre.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Santa Joana d'Arc




Deixo-vos hoje esta bela catequese do Papa Bento XVI acerca da donzela de Domrémy.

Ó Deus dai-nos a coragem de Santa Joana d'Arc!

Santa Joana d'Arc, rogai por nós!

Todos os destaques são meus.

William
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Queridos irmãos e irmãs:

Hoje, eu gostaria de falar de Joana d'Arc, uma jovem santa do final da Idade Média, morta aos 19 anos, em 1431. Esta santa francesa, citada muitas vezes no Catecismo da Igreja Católica, é particularmente próxima de Santa Catarina de Sena, padroeira da Itália e da Europa, de quem falei em uma recente catequese. São, de fato, duas jovens mulheres do povo, leigas e consagradas na virgindade, duas místicas comprometidas, não no claustro, mas em meio às realidades mais dramáticas da Igreja e do mundo na sua época. São, talvez, as figuras mais características dessas "mulheres fortes" que, no final da Idade Média, carregaram sem medo a grande luz do Evangelho nas complexas vicissitudes da história. Poderíamos colocá-la ao lado das santas mulheres que permaneceram no Calvário, perto de Jesus crucificado e de Maria, sua Mãe, enquanto os apóstolos tinham fugido, e o próprio Pedro havia negado Jesus três vezes. A Igreja, nesse período, vivia a profunda crise do Grande Cisma do Ocidente, que durou quase 40 anos. Quando Catarina de Sena morreu, em 1380, havia um Papa e um antipapa; quando Joana nasceu, em 1412, havia um Papa e dois antipapas. Junto a esta laceração no seio da Igreja, havia contínuas guerras fratricidas entre os povos cristãos da Europa, a mais dramática das quais foi a interminável "Guerra dos Cem Anos", entre a França e a Inglaterra.

Joana d'Arc não sabia ler nem escrever, mas pode ser conhecida no fundo de sua alma graças a duas fontes de valor histórico excepcional: os dois Processos a que foi submetida. O primeiro, Processo de Condenação (PCon) contém a transcrição de numerosos e longos interrogatórios a Joana durante os últimos meses de sua vida (fevereiro-maio de 1431) e inclui as palavras da santa. O segundo, Processo de Nulidade da Condenação, ou de "reabilitação" (PNul), contém o depoimento de cerca de 120 testemunhas oculares de todos os períodos da sua vida (cf. Procès de Condamnation de Jeanne d'Arc, 3 vol. e Procès en Nullité de la Condamnation de Jeanne d'Arc, 5 vol., ed. Klincksieck, Paris l960-1989).

Joana nasceu em Domrémy, uma pequena cidade situada na fronteira entre a França e Lorena. Seus pais eram camponeses prósperos, conhecidos por todos como cristãos muito bons. Deles, ela recebeu uma boa educação religiosa, com uma influência notável da espiritualidade do Nome de Jesus, ensinada por São Bernardino de Sena e difundida na Europa pelos franciscanos. Ao Nome de Jesus sempre se une o Nome de Maria e, assim, no contexto da religiosidade popular, a espiritualidade de Joana é profundamente cristocêntrica e mariana. Desde a infância, ela demonstra uma grande caridade e compaixão para com os pobres, doentes e todos os que sofrem, no contexto dramático da guerra.

De suas próprias palavras, sabemos que a vida religiosa de Joana amadurece como experiência a partir da idade de 13 anos (PCon, I, p. 47-48).Através da "voz" do arcanjo São Miguel, Joana sente-se chamada pelo Senhor a intensificar sua vida cristã e também a comprometer-se, em primeira pessoa, na libertação do seu povo. Sua resposta imediata, o seu "sim", é o voto de virgindade, com um novo empenho na vida sacramental e na oração: participação diária na Missa, Confissão e Comunhão frequentes, longos momentos de oração silenciosa diante do Crucificado ou diante da imagem de Nossa Senhora. A compaixão e o compromisso da camponesa francesa diante o sofrimento de seu povo tornaram-se mais intensos devido à sua relação mística com Deus. Um dos aspectos mais originais da santidade desta jovem é precisamente este vínculo entre experiência mística e missão política. Depois dos anos de vida oculta e de amadurecimento interior, chega o biênio breve, mas intenso, da sua vida pública: um ano de ação e um ano de paixão.

No início de 1429, Joana começa a sua obra de libertação. Vários depoimentos mostram a jovem, de apenas 17 anos, como uma pessoa muito forte e determinada, capaz de convencer homens inseguros e desanimados. Superando todos os obstáculos, encontra o Delfim da França, futuro rei Charles VII, que em Poitiers a submete a um exame por parte de alguns teólogos da Universidade. Seu julgamento é positivo: não veem nela nada de errado, apenas uma boa cristã.

Em 22 de março de 1429, Joana dita uma carta importante ao rei da Inglaterra e aos seus homens, que assediam a cidade de Orléans (Ibid., p. 221-222). Sua proposta é de verdadeira paz, na justiça entre os dois povos cristãos, à luz dos nomes de Jesus e Maria, mas esta proposta é rejeitada e Joana deve se engajar na luta pela libertação da cidade, que acontece em 8 de maio. O outro destaque de sua ação política é a coroação do rei Charles VII em Reims, em 17 de julho de 1429. Durante um ano inteiro, Joana vive com os soldados, realizando entre eles uma verdadeira missão de evangelização. Há muitos testemunhos de sua bondade, sua coragem e extraordinária pureza. É chamada por todos - e ela mesma se define - como "a donzela", ou seja, a virgem.

A paixão de Joana começa em 23 de maio de 1430, quando é presa pelos seus inimigos. Em 23 de dezembro, é conduzida à cidade de Rouen. Lá, leva-se a cabo o longo e dramático Processo de Condenação, que começa em fevereiro de 1431 e termina em 30 de maio, com a fogueira. É um processo grande e solene, presidido por dois juízes da igreja, o bispo Pierre Cauchon e o inquisidor Jean Le Maistre, mas, na verdade, foi totalmente conduzido por um grande grupo de teólogos da famosa Universidade de Paris, envolvidos no processo como conselheiros. Eles são eclesiásticos franceses que, tendo tomado a decisão política oposta à de Joana, têm a priori uma opinião negativa sobre sua pessoa e sobre sua missão. Este processo é uma página comovente da história da santidade e também uma página iluminadora sobre o mistério da Igreja, que, nas palavras do Concílio Vaticano II, é "ao mesmo tempo santa e sempre necessitada de purificação" (LG, 8). É o encontro dramático entre esta santa e seus juízes, que são eclesiásticos. Joana é acusada e julgada por eles, até chegar a ser condenada como herege e enviada à morte horrível da fogueira. Ao contrário dos santos teólogos que haviam iluminado a Universidade de Paris, como São Boaventura, São Tomás de Aquino e o Beato Duns Scotus, de quem já falei em algumas catequeses, esses juízes são teólogos a quem falta a caridade e a humildade necessárias para ver nessa jovem a ação de Deus. Vêm à mente as palavras de Jesus segundo as quais os mistérios de Deus se revelam a que tem o coração das crianças, enquanto permanecem ocultos aos estudiosos e sábios que não têm humildade (cf. Lc 10, 21). Assim, os juízes de Joana são radicalmente incapazes de compreendê-la, de ver a beleza de sua alma: não sabiam que estavam condenando uma santa. 

A apelação de Joana à decisão do Papa, em 24 de maio, foi rejeitada pelo tribunal. Na manhã do dia 30 de maio, ela recebeu pela última vez a Santa Comunhão na prisão e logo depois foi levada ao suplício na praça do mercado velho. Pediu a um dos sacerdotes que colocasse na frente da fogueira uma cruz da procissão. Assim morre Joana, vendo Jesus Crucificado e pronunciando muitas vezes e em voz alta o Nome de Jesus (PNul, I, p. 457, cf. Catecismo da Igreja Católica, 435). Quase 25 anos depois, o Processo de Nulidade, aberto sob a autoridade do Papa Calisto III, termina com uma sentença solene que declara a condenação nula (7 julho de 1456; PNul, II, p 604-610). Este longo processo, que inclui o depoimento de testemunhas e juízos de muitos teólogos, todos favoráveis à Joana, destaca a sua inocência e perfeita fidelidade à Igreja. Joana d'Arc foi canonizada em 1920, por Bento XV.

Queridos irmãos e irmãs, o Nome de Jesus, invocado pela nossa santa até os últimos momentos da sua vida terrena, foi como a respiração da sua alma, como o bater do seu coração, o centro de toda a sua vida. O "mistério da caridade de Joana d'Arc", que tanto fascinou o poeta Charles Péguy, é esse amor total a Jesus e aos demais, em Jesus e por Jesus. Esta santa compreendeu que o Amor abraça toda a realidade de Deus e do homem, do céu e da terra, da Igreja e do mundo. Jesus esteve sempre em primeiro lugar durante toda a sua vida, segundo sua belíssima afirmação: "Nosso Senhor é o primeiro a ser servido" (PCon, I, p. 288, cf. Catecismo da Igreja Católica, 223).

Amá-lo significa obedecer sempre à sua vontade. Ela afirmou com total confiança e abandono: "Eu me confio ao meu Deus Criador, eu o amo com todo meu coração" (ibid., p. 337). Com o voto de virgindade, Joana consagra de forma exclusiva toda a sua pessoa ao único amor de Jesus: é a sua "promessa feita ao nosso Senhor de proteger bem a sua virgindade de corpo e de alma" (ibid., p. 149-150). A virgindade da alma é o estado de graça, valor supremo, para ela mais precioso que a vida: é um dom de Deus que ela recebeu e protegeu com humildade e confiança. Um dos textos mais conhecidos do primeiro processo tem a ver com isso: "Interrogada sobre se sabe se está na graça de Deus, responde: ‘Se não estou, Deus nela me ponha: se estou, Deus nela me guarde'" (ibid., p. 62, cf. Catecismo da Igreja Católica, 2005).

Nossa santa viveu a oração como uma forma de diálogo contínuo com o Senhor, que ilumina também seu diálogo com os juízes e lhe confere paz e segurança. Ela pediu com fé: "Dulcíssimo Deus, em honra à vossa santa Paixão, eu vos peço, se me amais, que me reveleis como devo responder a estes homens da Igreja" (ibid., p. 252). Joana vê Jesus como o "Rei do céu e da terra". Assim, em seu estandarte, Joana pintou a imagem de "Nosso Senhor, que sustenta o mundo" (ibid., p. 172), um ícone de sua missão política. A libertação do seu povo é uma obra de justiça humana, que Joana cumpre na caridade, por amor a Jesus. Sua vida é um belo exemplo de santidade para os leigos que trabalham na política, especialmente nas situações mais difíceis. A fé é a luz que guia cada escolha, como testemunhará, um século depois, outro grande santo, o inglês Thomas More. Em Jesus, Joana contempla também a realidade da Igreja, a "Igreja triunfante" do céu e a "Igreja militante" da terra. Em suas palavras, "de Jesus Cristo e da Igreja eu penso que são um só" (ibid., p. 166). Esta afirmação, citada no Catecismo da Igreja Católica (n. 795), tem um caráter verdadeiramente heroico no contexto do Processo de Condenação, na frente de seus juízes, homens da Igreja, que a perseguiram e condenaram. No amor de Jesus, Joana encontrou a força para amar a Igreja até o fim, mesmo no momento da condenação.

Lembro-me com carinho de como Santa Joana d'Arc teve uma profunda influência sobre uma jovem santa dos tempos modernos: Teresinha do Menino Jesus. Em uma vida completamente diferente, transcorrida na clausura, a carmelita de Lisieux se sentiu muito perto de Joana, vivendo no coração da Igreja e participando dos sofrimentos de Jesus para a salvação do mundo. A Igreja as reuniu como padroeiras da França, depois de Nossa Senhora. Santa Teresa expressou seu desejo de morrer como Joana, pronunciando o nome de Jesus (Manoscritto B, 3r); motivava-a o mesmo amor a Jesus e ao próximo, vivendo na virgindade consagrada.

Queridos irmãos e irmãs, com seu luminoso testemunho, Santa Joana d'Arc nos convida a um alto nível da vida cristã: fazer da oração o fio condutor dos nossos dias; ter plena confiança no cumprimento da vontade de Deus, seja ela qual for; viver na caridade sem favoritismos, sem limites; e ter, como ela, no amor a Jesus, um profundo amor à Igreja. Obrigado.
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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Comentário de São Vicente de Lérins sobre as armadilhas dos hereges


Gostaria de compartilhar com todos este trecho da obra Commonitorium de São Vicente de Lérins [capítulos 25 e 27], que fora escrito em meados do século V.

Que este texto nos ajude a sermos mais cautelosos em relação aos "lobos" que querem destruir a verdadeira Fé utilizando a própria Bíblia para este pérfido intento.

Que a Virgem Santíssima não cesse de interceder por nós e que o Senhor abençoe a todos!

William Bottazzini.

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Os hereges recorrem à Escritura

Mas alguém dirá: acaso os hereges não se servem dos testemunhos das Sagradas Escrituras?

É certo que se servem. E com que apaixonada veemência! É possível vê-los passar de um livro a outro da Santa Lei: desde Moisés aos livros dos Reis, desde os Salmos aos Apóstolos, desde os Evangelhos aos Profetas. Em suas assembléias, com os estranhos, em privado, em público, nos discursos e nos escritos, durante as refeições e nas praças públicas, é raro manterem alguma coisa se antes não a houverem revestido com a autoridade das Sagradas Escrituras.

Basta ler as obras de Paulo de Samósata, de Prisciliano, de Eunômio, de Joviniano e de todas as outras pestes; imediatamente  se nota o acúmulo infinito de textos bíblicos: quase não há página que não esteja colorida ou ornamentada com passagens do Antigo e do Novo Testamento. Contudo, quanto mais buscam ocultar-se sob a sombra da Lei Divina, mais necessário ainda é estarmos de guarda e temê-los.

Com efeito, eles sabem que suas exalações pestilentas, nuas e diretas, não encontrariam o apoio de ninguém; por isso, perfumam-nas com o aroma da palavra celestial, já que aquele que facilmente repudiaria um erro humano, não está disposto a depreciar com tanta facilidade os oráculos divinos.

Os hereges fazem a mesma coisa que aqueles que, para suavizar o amargor dos remédios destinados às crianças, untam com mel a borda do copo; as crianças, com a ingênua simplicidade de sua idade, uma vez que tenham provado o doce, engolem, sem suspeitas e sem temor, também o amargo. Do mesmo modo agem aqueles que mascaram com nomes medicinais ervas nocivas e sucos venenosos, para que ninguém, ao ler a etiqueta, possa suspeitar de que se trata de venenos, não de remédios para a saúde.

A este propósito, clamava o Salvador: Guardai-vos dos falsos profetas que vêm até vós disfarçados em pele de ovelhas, mas, por dentro, são lobos ferozes. Que outra coisa são estas peles de ovelhas, senão as palavras dos Profetas e dos Apóstolos, com as quais estes mesmos, com mansa simplicidade, revestiram com um véu o Cordeiro imaculado que tira o pecado do mundo? Por outro lado, quem são os lobos vorazes, senão as doutrinas selvagens e enraivecidas dos hereges, que infectam o redil da Igreja, para desgarrar, da melhor maneira possível, o rebanho de Cristo? Para que possam surpreender mais facilmente as ovelhas incautas, mascaram seu aspecto de lobos, embora conservando a sua ferocidade, revestindo-se com frases da Lei Divina como que com um véu, a fim de que, ao sentir a brandura da lã, as ovelhas não suspeitem de seus dentes agudos.

Mas, o que diz o Salvador? Por seus frutos os conhecereis. Ou seja, quando já não mais estão satisfeitos em citar e predicar as palavras divinas, começam a explicá-las e a comentá-las, então se tornarão manifestos sua amargura, sua aspereza e sua raiva; então se espalhará um novo fedor e aparecerão as novidades ímpias; então se verá pela primeira vez o cercado arrancado e transladados os limites estabelecidos pelos pais; ultrajada a fé católica e o dogma da Igreja feito em pedaços.

Eram pessoas desta ralé que eram fustigadas pelo Apóstolo em sua segunda carta aos coríntios: Estes falsos apóstolos são operários enganosos, que se disfarçam de Apóstolos de Cristo. O que significa a frase “se disfarçam de Apóstolos de Cristo”? Os Apóstolos citavam textos da Lei Divina, os falsos apóstolos faziam o mesmo; os Apóstolos se apoiavam na autoridade dos Salmos e dos Profetas, e os falsos apóstolos  faziam o mesmo. Entretanto, quando estes começaram a interpretar de maneira diferente os mesmos textos, então se distinguiram os sinceros dos falsários, os genuínos dos artificiais, os retos dos perversos, em uma palavra, os verdadeiros Apóstolos dos falsos. E não é de se estranhar – explica São Paulo – pois o mesmo Satanás se transforma em anjo de luz. Assim, não é de se surpreender que seus ministros se transfigurem em ministros de justiça.

Segundo o ensinamento do Apóstolo, toda vez que os falsos apóstolos, os falsos profetas, os falsos doutores citam passagens da Lei Divina com as quais, interpretando-as mal, tentam sustentar os seus erros, não resta dúvida de que seguem uma tática pérfida de seu autor e mestre, o qual certamente não a haveria utilizado, se não houvesse compreendido que não há melhor caminho para induzir os fiéis ao engano, do que introduzir fraudulentamente um erro cobrindo-o com a autoridade das palavras divinas.

Como vencer as insídias diabólicas dos hereges

Depois de tudo o que dissemos, é lógico perguntar: se o diabo e seus discípulos – pseudo-apóstolos, pseudo-profetas, pseudo-mestres e hereges em geral – estão acostumados a utilizar as palavras, as sentenças e as profecias da Escritura, como deverão comportar-se os católicos, os filhos da Madre Igreja? O que deverão fazer para que possam distinguir, nas Sagradas Escrituras, a verdade do erro?

Os católicos terão a verdadeira preocupação em seguir as normas que, no começo destas notas, escrevi e que foram transmitidas por doutos e piedosos homens; ou seja, eles interpretarão o Cânon divino das Escrituras de acordo com as tradições da Igreja universal e as regras do dogma católico; na mesma Igreja Católica e Apostólica, deverão seguir a universalidade, a antiguidade e a unanimidade de consenso.

Por conseguinte, se acontecesse que uma fração se rebelasse contra a universalidade, que a novidade se levantasse contra a antiguidade, que a dissensão de um ou de poucos se elevasse contra o consenso de todos ou, ao menos, de um número muito grande de católicos, dever-se-ia preferir a integridade da totalidade à corrupção de uma parte; dentro da mesma universalidade, será preciso preferir a religião antiga à novidade profana; e, na antiguidade, é necessário antepor à temeridade de pouquíssimos os decretos gerais, se os houver, de um concílio universal; caso estes decretos não existam, dever-se-á seguir aquilo que mais se aproxima deles, ou seja, as opiniões concordes de muitos e grandes mestres.

Se, com a ajuda do Senhor, observarmos com fidelidade e solicitude estas regras, conseguiremos descobrir sem grande dificuldade, e a partir de sua mesma fonte, os erros nocivos dos hereges.
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Tradução de William Botazzini e texto, em inglês, disponível em: www.newadvent.org/fathers/3506.htm

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O Encontro de um Comunista com Jesus


Uma vida sempre em busca de sentido. Fascinado pelas ideias de liberação da ideologia comunista, seguiu por diversos caminhos até se tornar deputado e dirigente. Desiludido, praticou o niilismo, o evolucionismo e o relativismo, até que, um dia, teve um encontro apaixonado e comovente com Jesus.

Trata-se, em síntese, do caso de Pietro Barcellona, docente de Filosofia do Direito junto à Faculdade de Direito da Universidade de Catania. Ele já foi membro do Conselho Superior da Magistratura e, após isso, deputado e membro da Comissão de Justiça da Câmara, além de autor de inúmeras publicações.

Para contar a sua história e, acima de tudo, para comunicar as razões deste namoro, o prof. Pietro Barcellona publicou o livro “Encontro com Jesus” (edições Marietti).

“Percorrendo uma vez mais os caminhos de minha vida neste encontro com Jesus – escreve – vivi uma experiência que não pode encontrar resposta nem no terreno da filosofia, nem no da teologia e da mística, pois a questão acerca da pessoa de Jesus jamais é completamente preenchida”.

Barcellona ainda se considera um “materialista” no sentido de necessidade do contato humano e carnal com a consciência, e explica: “Aquilo que me interessa, me inquieta e me conduziu a estas reflexões atuais é a figura concreta de Jesus: um homem que é filho de Deus. Parece-me, esta, a novidade absoluta do cristianismo, até porque não se pode pensar em Jesus Cristo como uma doutrina, e assim, uma teoria. Cristo não é uma teoria. É uma encarnação. E se é uma encarnação não há como deixar de ser uma presença. A teoria pode ser publicada e transmitida. A presença tem que ser percebida”.

Para o docente de Filosofia do Direito, “diferentemente da ideia de Deus, a qual pode ser, de certa forma, o resultado da atividade da razão, acredito que, em relação a Jesus, não se pode ter uma abordagem filosófica”.

“É como se eu quisesse transformar a amizade em um conjunto de regras para conquistar a simpatia de uma pessoa – acrescenta. As regras criarão um breve tratado sobre a amizade, mas não criarão a amizade. Esta nasce quando ocorre aquilo que ocorre. Um pouco como o amor”.

O prof. Barcellona afirma que “o terreno sobre o qual acontece o encontro com Jesus não é um terreno filosófico; é um terreno que está ligado à contemporaneidade, à presença atual”.
E esta, “não é uma coisa nem simples, nem garantida para sempre”, por isso é necessário “buscar esta presença”.

“Para que este encontro se produza e se repita – diz Barcellona – você tem que se colocar no meio do caminho, pois se você se fecha em suas certezas, você cria uma operação estática que é incompatível com este movimento de Jesus. Jesus é um movimento contínuo da encarnação. O Verbo que se faz carne na realidade cotidiana, se você o fossiliza, as dúvidas voltam e você perde o contato”.

Em diversos artigos e entrevistas, o autor conta como ficou fascinado com a ideologia comunista.

“O comunismo – recorda Barcellona – parecia-me não apenas a redescoberta de um mundo real, dado que eu havia estudado direito e estivera muito fechado em meu mundo, mas, para mim, parecia ser também uma resposta às minhas questões iniciais: isto é, que é próprio do homem estar junto aos outros para construir um futuro de salvação. Salvação humana, mas sempre salvação. À pergunta ‘quem sou eu? ’, respondia: sou um comunista que está lutando por uma sociedade melhor”.

Mas, após a queda do muro de Berlim, Barcellona conta que “tendo o muro caído, eu também caí. Com o fim do PCI, tive uma depressão grave e, por isso, recorri à análise. Contudo, na verdade, o motivo pelo qual adoeci foi a desagregação humana dos grupos com os quais estava acostumado a viver”.

“Trabalhei por muitos anos em Roma com Ingrao no Centro para Reforma do Estado, dirigia uma revista e tinha uma relação de amizade com muitos dos intelectuais italianos que hoje estão nas páginas dos jornais e que discursam nas festividades. Com estes, acreditava possuir uma relação de grande amizade. Infelizmente este tipo de ruptura determinou uma agressividade e um ataque recíproco inaudito que me deixou improvisamente nu. Vi alguns amigos, com os quais compartilhava algumas ideias, desaparecerem e ressurgirem em outras frentes. Tal fato causou em mim uma grande dor pessoal”.

Após a ruptura com o PCI, o prof. Barcellona confrontou-se com aqueles que chamou de monstros: “Niilismo, evolucionismo e relativismo – escreve o autor do livro – levam todos ao mesmo resultado: a vida não vale nada, é algo puramente funcional, equivalente a qualquer outro fator que se insere na cadeia evolutiva para que haja a reprodução da vida material”.

“Fiquei aterrorizado – confessa Barcellona – com a difusão, no senso comum, da ideia de que todas as coisas não valem nada, com a impossibilidade de se dar valor às coisas” e, ainda, “em relação ao niilismo, receio que sua implicação prática se traduza em indiferença e apatia e condene os jovens a uma passividade sem esperança”.

O prof. Barcellona conclui, afirmando que “a história humana não pode ser “salva” sem que o divino inerve intimamente os acontecimentos terrenos dos homens e das mulheres de carne e osso. Eis o motivo pelo qual fui atingido de modo afetivo pelo Evangelho de Jesus Cristo. O nascimento de Jesus é, na verdade, uma ruptura temporal em relação ao modo tradicional de ver a relação entre o divino e o humano: o Verbo encarnado, filho do homem e filho de Deus, nascido de uma mulher, com uma maternidade afetiva, representa uma novidade absoluta no grande drama da história humana”.

Traduzido do italiano por William Bottazzini.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Homilia de São Cirilo sobre Nossa Senhora


Das Homilias de São Cirilo de Alexandria, bispo
Homilia 15, 1-3, De Incarnatione Verbi Dei (Patrologia Grega 77, 1090-1091)

A Santa Virgem deve ser chamada Mãe de Deus

Profundo, grande e verdadeiramente admirável é o mistério da fé, que até os santos anjos desejam conhecer. Diz, com efeito, um discípulo do Salvador, acerca de tudo o que disseram os profetas sobre Cristo, Salvador do mundo: Agora vo-los anunciam aqueles que vos pregam a Boa Nova em virtude do Espírito Santo, enviado do céu; são revelações que até os anjos desejam contemplar! (1Pd 1, 12). Assim, quando Cristo nasceu na carne, todos os que penetraram com inteligência o grande mistério da fé, diziam: Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados! (Lc 2, 14).

Sendo ele por natureza verdadeiro Deus, Verbo nascido de Deus Pai, consubstancial e coeterno com ele, e brilhando por sua própria dignidade, na forma e igualdade daquele que o gerou, não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas despojou-se a si mesmo, assumindo de Santa Maria a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Vivendo tal qual os outros homens, humilhou-se, fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz! (Fl 2, 6-8). Espontaneamente humilhou-se aquele que dá a todos de sua plenitude. Aviltou-se por nós, sem coação alguma, assumindo a forma de escravo, aquele que por natureza era livre. Fez-se um de nós o que estava acima de todas as criaturas. Tornou-se mortal o que a todos dá a vida. Ele é o pão vivo, que dá vida ao mundo (cf. Jo 6, 51.33). Submeteu-se conosco à lei o que era superior à lei, o próprio legislador, ele que era Deus. Fez-se como um dos nascidos, cuja vida tem um começo, ele que existia antes de todo o tempo e de todos os séculos, o próprio Autor e Criador dos séculos.

Como, então, se tornou igual a nós? Tomando um corpo da Santa Virgem, não um corpo sem alma, como pensam alguns hereges, mas informado por uma alma racional. Assim, nasceu homem perfeito de uma mulher, porém sem pecado; um homem verdadeiro, não uma aparência ilusória ou fantástica. Não perdendo, evidentemente, a divindade, nem rejeitando o que sempre fora, é e será: Deus. Precisamente por isso chamamos e proclamamos Mãe de Deus a Santa Virgem. Pois, como diz São Paulo: Existe um só Deus, o Pai, do qual vêm todos os seres; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual tudo existe (1Cor 8, 6). De modo algum dividimos em dois filhos o único Deus e Salvador, o Verbo de Deus encarnado e feito homem.

Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus



Abaixo, compartilho um belo texto redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo), sobre a Solenidade de hoje.


Todos os destaques são meus.

Pax Domini Sit Semper Vobiscum

William

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(Oitava do Natal - 1 de janeiro)

Maria guardava cuidadosamente todos estes fatos e meditava sobre eles no seu coração”.

Leituras: Nm 6, 22 – 27; Gl 4, 4 -7; Lc 2, 16 – 21

No oitavo dia da solenidade do Natal, no cume, por assim dizer, do dinamismo vital com que o Espírito Santo fecundou a Bem-Aventurada Virgem, a Igreja contempla e celebra na fé e na alegria o mistério de Maria, Mãe de Deus e Mãe da Igreja e da nova humanidade renascida em Cristo

Durante o tempo do Advento, a liturgia ficou repetindo todos os dias a saudação do anjo: “Maria, alegra-te, ó cheia de graça, o Senhor está contigo; és bendita entre todas as mulheres da terra” (Liturgia das Horas: Antífona da Hora média; cf Lc 1, 28; 42). 

A virgem Maria é saudada pelo anjo, e celebrada pela Igreja, como aquela que de maneira única está portando no seio e irradia ao redor de si mesma a graça de Deus feita pessoa, o Filho do Altíssimo que já no seu próprio nome, Jesus, indica sua profunda identidade e sua missão: revelar a benevolência do Pai, salvar e resgatar do mal toda a humanidade e abrir novamente para ela o caminho para a casa do Pai. Maria, Mãe de Deus, participa também na geração da nova humanidade, cujas primícias é a pessoa do próprio Jesus (cf. Rm 5, 15-19). 

Deus continua seguindo o critério da simplicidade, da fraqueza, do “esvaziamento” (cf. Fil 2, 6-11); critério este, escolhido desde o início para se manifestar e atuar na história. Ele suscita a resposta livre da fé por parte de todos os parceiros que chama para colaborar na sua obra redentora. Assim como fez com Abraão, pai dos crentes, com os patriarcas e com os profetas, do mesmo modo atua com Maria e com José. Ao cumprir-se o tempo estabelecido por Deus de realizar seu projeto de salvação, não envia seu Filho do céu, em maneira espetacular, mas Ele “nasce de mulher” como todo homem, e está inserido na história gloriosa e ambígua do povo de Israel, destinatário primeiro da aliança e portador da esperança para todos os povos (cf. 2ª leitura - Gl 4, 4-5). 

O lugar onde se cumprem as promessas de Deus e se manifesta a sua potência que salva não é a nobre cidade de Jerusalém, nem o lugar sagrado do templo, mas o menino recém-nascido, deitado numa manjedoura. Somente os pobres e os simples de coração, afinados com Deus, como os pastores, conseguem receber o surpreendente anúncio do céu e acreditar nele. Os pastores de Belém representam os pobres de todos os tempos, no solícito caminho rumo ao menino, assim como na capacidade de reconhecer com estupor no recém nascido da manjedoura, o Salvador esperado pelo povo e anunciado pelos anjos. Pela luz interior que os acompanha, eles se tornam “anunciadores da boa nova” até para aqueles que se encontram junto do menino, suscitando maravilha mesmo nos pais dele (Lc 2, 16-18). 

Para todos os efeitos, Jesus, o Filho do Pai, é também o filho do seu povo, da experiência humana, espiritual e cultural de sua gente, do seu tempo. O papa João Paulo II, na sua histórica visita à sinagoga de Roma (1986), quis lembrar a todos os cristãos que os judeus são nossos “irmãos maiores”, e que desta carne nasceu Jesus. Ao seguir a novidade produzida pelo próprio Jesus, não podemos esquecer as raízes judaicas da experiência cristã. É a fidelidade ao mistério da Encarnação que exige de nós tal atenção. O esquecimento desta perspectiva não é estranho aos devastadores critérios que ao longo dos séculos marcaram infelizmente as relações entre cristãos e judeus, até a Shoa, o holocausto do povo judeu, ocorrido no século passado. 

Neste povo e nesta história santa o menino Jesus é inserido plenamente com o rito simbólico da circuncisão ao oitavo dia depois do nascimento, - como lembra o Evangelho de hoje - quando recebe o “nome” escolhido por Deus e preanunciado pelo anjo. Assim como acontecia nos tempos de Jesus, ocorre ainda hoje no povo de Israel a circuncisão com os meninos recém-nascidos. 

Os profetas (cf Jr 4,4), assim como o Novo Testamento, reivindicam a dimensão interior da circuncisão, a “circuncisão do coração”, enquanto sinal da aliança e da fidelidade ao Senhor. Paulo ensina com vigor que a autêntica circuncisão que faz o verdadeiro Israel, é a do coração (cf Rm 2, 25 - 27;  Gl 5,5). Por isso a profissão de fé em Jesus e o batismo, desde muito cedo, irão substituir o sagrado e antigo rito judaico para os discípulos de Cristo, o realizador da nova aliança. Mas o apóstolo admoesta sempre que somente uma vida animada e guiada pelo Espírito de Cristo, faz dos discípulos, autênticos “circuncidados no coração” e “batizados” no Senhor.

A este mundo humano e espiritual Jesus é introduzido gradualmente por Maria e José, aos quais fica submetido em filial obediência, enquanto cresce em vigor físico e sabedoria espiritual, e ao mesmo tempo vai abrindo seu próprio caminho para cumprir sua vocação e missão pessoal ao serviço do Pai.  

Na Sagrada Família, como em toda família que acredita no Senhor, todos juntos e cada um de parte sua, Maria, José e Jesus, estão aprendendo dia após dia seu caminho, buscando descobrir e seguir a vontade de Deus. À materna preocupação manifestada por Maria ao encontrá-lo no templo de Jerusalém três dias depois ter se afastado da família, Jesus responde: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai? Eles, porém, não compreenderam a palavra que ele lhes dissera. Desceu então com eles para Nazaré e era-lhes submisso. Sua mãe, porem, conservava lembrança de todos estes fatos em seu coração” (Lc 2, 49-51). A maternidade de Maria é dom sublime de Deus. Mas é também uma aprendizagem progressiva na fé e no amor, que alcançará sua plenitude aos pés da cruz, quando o próprio Jesus entregará a ela como um filho, no discípulo amado, toda a humanidade, e esta, por sua vez, será entregue pelo Senhor à Maria, que nesse instante será uma Mãe para todos (cf Jo 19, 25 – 27). 

O evangelista Lucas destaca com insistência a atitude interior de Maria - com certeza partilhada também por José - frente aos acontecimentos da vida. Ela continua, por assim dizer, o processo de gestação e interiorização da Palavra que tinha concebido em si mesma por obra do Espírito Santo na plena disponibilidade da fé e que agora não cessa de interpelá-la. Esta atitude de silêncio meditativo, de contemplação cheia de perguntas sem respostas imediatas e de entrega confiante ao mistério de Deus, acompanhará Maria ao longo da sua vida junto de Jesus, nos momentos alegres e nos momentos problemáticos e tristes (Lc 2, 51; Mt 12,48-50), até os pés da cruz. 

Por esta atitude de escuta, silêncio e entrega confiante a Deus, a Virgem Maria se torna as primícias do reino de Deus e exemplo da Igreja inteira e de todo discípulo e discípula de Jesus. É o próprio Jesus a nos oferecer esta perspectiva cheia de fascínio para aqueles que acreditam nele: “Jesus respondeu àquele que o avisou: Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? E apontando para os discípulos com a mão, disse: Aqui estão minha mãe e meus irmãos, porque aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12, 48-50).  

Gostaria partilhar algumas reflexões de Santo Agostinho sobre estas palavras de Jesus, reflexões com que ele une de maneira admirável no mesmo caminho de fé a Virgem Maria, a Igreja e cada um de nós. 

Prestai atenção, rogo-vos – diz o grande doutor da Igreja – naquilo que Cristo Senhor diz, estendendo a mão para os discípulos... Acaso não fez a vontade do Pai a virgem Maria, que creu pela fé, pela fé concebeu?... Sim! Ela o fez! Santa Maria fez totalmente a vontade do Pai e por isso mais valeu para ela ser discípula de Cristo do que mãe de Cristo. Assim Maria era feliz porque, já antes de dar à luz o mestre, trazia-o na mente....Santa Maria, feliz Maria! Contudo, a Igreja é maior que a Virgem Maria. Por quê ? Porque Maria é porção da Igreja, membro santo, membro excelente, membro super-eminente, mas membro do corpo total....Portanto, irmãos, dai atenção a vós mesmos. Também vós sois membros de Cristo. Vede de que modo o sois. Diz: Eis minha mãe e meus irmãos...Como sereis mãe de Cristo? “Todo aquele que ouve e faz a vontade do meu Pai que está nos céus, este é meu irmão e irmã e mãe ” (Sermão 25,7-8; LH IV, 1466-67).

Maria foi eleita e chamada por graça a dar sua própria carne ao Filho de Deus para ele realizar sua missão de Salvador para todos os homens e mulheres. Na sua resposta de fé e de entrega incondicionada a Deus, Maria primeiro realiza aquela atitude interior que, nas palavras do próprio Jesus, constitui a condição para fazer de todo discípulo e discípula, a exemplo de Maria, o seio fecundo onde a Palavra de Deus é acolhida e se torna principio vital da nova existência animada pela fé. 

O mesmo Espírito que fecundou a virgindade de Maria fecunda a fé da Igreja e a faz mãe fecunda, capaz de gerar filhos e filhas com a pregação da Palavra, a experiência pascal dos sacramentos e a proximidade do amor. 

Admirável Natal! Nós, os renascidos à vida do Pai como filhos e filhas adotivos no Filho, pelo dom do Espírito que nos anima (2ª leitura – Gl 4, 5-7), somos inseridos em tamanha intimidade com Jesus, que nos tornarmos seus irmãos, irmãs, e mesmo sua mãe! Capazes, por graça, de fazê-lo nascer a cada dia em nós para que nós possamos viver sempre mais nele e para ele, até partilhar com o apóstolo a admirável experiência da plena conformação com ele: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). 

Estas afirmações, que vêm da Escritura, dos Padres da Igreja e da Liturgia, talvez soem um pouco surpreendentes aos nossos ouvidos. Talvez sejamos tentados a reduzi-las como lindas e sugestivas expressões poéticas, destinadas a acariciar nossa sensibilidade estética e nossa emotividade devota. Pelo contrário, nos deixam vislumbrar o coração do mistério do amor de Deus e do seu esvaziamento que nos introduzem de novo no caminho da vida e da verdade. Deixam-nos vislumbrar o mistério da fecundidade insondável da fé de Maria e da fecundidade da Palavra de Deus no coração de todo discípulo e discípula de Jesus, quando a recebem e a guardam com fé. Oferecem-nos as razões mais profundas e o caminho mais certo para alimentar e guiar nosso culto e nosso amor filial a Maria, nossa irmã e mãe na fé, na esperança e na caridade. 

O povo cristão desde o início, com a intuição simples e profunda da sua fé, percebeu e honrou na virgem Maria, a Mãe de Deus e do Redentor, e a Mãe da Igreja. É como se exprime o Concílio Vaticano II: Maria foi e “é saudada também como membro super-eminente e de todo singular da Igreja, como seu tipo e modelo excelente na fé e caridade. E a Igreja católica, instruída pelo Espírito Santo, honra-a com afeto de piedade filial como Mãe amantíssima” (LG 53). 

A constituição Lumen Gentium do Concílio Vaticano II, no capítulo 8º, nos oferece uma maravilhosa síntese da fé e da piedade da Igreja do Oriente e do Ocidente sobre a “Bem-aventurada virgem Maria Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja”. Um tesouro ainda por descobrir, junto com outra mina preciosa, rica da linfa vital da tradição e de elementos novos, constituída pela liturgia renovada pelo Concílio e dedicada às celebrações de Santa Maria.