Por Arcebispo Charles J. Chaput
A Reforma, mesmo sem querer, desfez
a síntese medieval entre a fé e a razão. Atualmente nós, de modo romântico,
buscamos uma vida espiritual livre de qualquer autoridade e tradição, ou então,
de modo racionalista, buscamos a verdade como se os seres humanos fossem
autônomos e auto-suficientes.
Virá
o dia em que os católicos não poderão apoiar nenhum dos principais partidos
políticos americanos. Alguns acham mesmo que este dia já chegou. Alasdair
MacIntyre, o filósofo de Notre Dame, argumentou-o nestas linhas há alguns anos,
explicando o porquê de não se poder votar nem em um democrata nem em um
republicano.
Desconheço
o que o Prof. Macintyre fará este ano. De minha parte, bem como da parte de meus
irmãos no episcopado na Pennsylvania, acredito ser importante votar hoje em
cada dia de eleição. Uma consciência católica bem formada pode escolher
sabiamente entre os candidatos. Este ano estão em jogo assuntos de grande importância.
Não
obstante, as eleições são tempos difíceis para os católicos sérios. Se nós
acreditamos na tradição encíclica – da Rerum
Novarum a Evangelium Vitae; da Humanae Vitae a Caritas in Veritate – então não podemos nos sentir confortáveis em
nenhum partido político. Os católicos dão prioridade ao direito à vida e à
integridade da família como pedras angulares da sociedade. Mas também temos
muito que dizer a respeito da economia e da imigração, da dívida desenfreada,
do desemprego, da guerra e da paz. Por isso que os bispos norte-americanos
notaram recentemente que “no ambiente atual, os católicos podem sentir-se
politicamente cassados, com a sensação de que nenhum partido e poucos
candidatos compartilham plenamente nosso compromisso exaustivo para com a vida
humana e a dignidade”.
Qualquer
cristão pode ser tentado a entrar em desespero. Mas a verdade é que sempre as
coisas foram como são. Como escrevera o autor da Epístola aos Hebreus, “não
temos aqui cidade permanente” (Heb 13:14). Agostinho admirava certas virtudes
pagãs, mas foi ele quem escreveu a Cidade
de Deus para nos lembrar que em primeiro lugar somos cristãos e depois
cidadãos do mundo. Precisamos aprender – às vezes de forma dolorosa – a deixar
nossa fé castigar os nossos desejos particularistas.
Nos
Estados Unidos, as nossas tensões políticas derivam dos nossos problemas
culturais. Evidentemente existem exceções, mas em nossos dias nossa cultura antepõe
frequentemente direitos a deveres, satisfação individual à comunidade e dúvida
à fé. Com efeito, aquilo que nos une é nosso direito de ficar perambulando
pelos shoppings e de comprar mais porcaria. É difícil viver uma vida de
virtudes quando tudo em torno de nós, na mídia e mesmo nas vidas de colegas e
pessoas próximas, a disciplina, a moderação e o sacrifício de si mesmo parecem
irrelevantes.
Brad
Gregory, o historiador de Notre Dame, tenta mostrar como nós chegamos a este
ponto em seu recente livro The Unintended Reformation: How a Religious Revolution
Secularized Society (Tradução
livre: A Reforma não desejada: como uma revolução religiosa secularizou a
sociedade). Suas respostas são surpreendentes e, para alguns leitores,
controversas. Porém seu livro também é importante – e a sua capacidade de
explicar as coisas é brilhante.
Gregory alega que o relativismo hodierno e o culto
do consumidor – algo que ironicamente é chamado de “os bens da vida” – possui
raízes que remontam há muitos séculos. O historiador não perde tempo com
nostalgias de uma era de ouro que nunca existiu. Contudo ele realmente mostra,
com uma clareza instigante, que o no século XVI os reformadores protestantes
involuntariamente puseram em marcha certas idéias que acabaram por viabilizar o
egocentrismo atual.
Gregory também mostra que se por um lado os
reformadores acenderam o pavio, os católicos medievais, por outro, haviam
preparado a dinamite. O laicato medieval era, muito frequentemente,
profundamente piedoso. E justamente porque era piedoso é que eles se lembravam
quando seus líderes não o eram. Leigos piedosos tinham desejo de reforma
justamente por causa de sua devoção. O clero da Idade Média tardia também
continuamente pregava uma coisa e fazia outra. Avareza, simonia, nepotismo,
luxúria, liberdade sexual e cisma na hierarquia criaram uma lacuna intolerável
entre o ensinamento cristão e a prática.
Muitos católicos trabalhavam para uma reforma a
partir de dentro. Alguns tiveram sucesso. Franciscanos, dominicanos e cistercienses
devem suas origens à reforma medieval. Humanistas como Erasmo e Thomas More fizeram
parte de uma comunidade internacional de correspondências que estava
determinada a renovar a vida cristã a partir de seu interior. Santos como
Catarina de Sena e Bernardo de Claraval falaram a verdade para os poderes
eclesiásticos.
Mas uma diferença crucial separava estas vozes
católicas dos reformadores protestantes: os católicos acreditavam que os
ensinamentos da Igreja estavam corretos. A única coisa de que ela precisava era
verdadeiramente vivê-los. Os católicos acreditavam que a presença de Cristo na
Eucaristia e nos outros sacramentos, nas Escrituras, nos santos e nas doutrinas
históricas da Igreja oferecia um estilo de vida cristão autêntico, que abrangia
todos os âmbitos da vida, suficiente para santificar a existência humana no
caso de esta estar realmente envolta e esmagada pelos seus abusos.
Os
protestantes, ensinando a sola scriptura,
jogaram fora muitas dessas coisas. Eles acreditavam que o depósito e a estrutura
da fé católica estavam equivocados já nos seus princípios; que Cristo não mais
habitava na Igreja Católica; e que apenas a Escritura comunicava a vontade de
Deus. A sola scriptura mudou tudo na
Cristandade ocidental. “A Igreja” tornou-se “as igrejas” e o processo,
inadvertidamente, mas de modo irrefreável, abasteceu a soberania individual e o
relativismo.
Gregory
diz muitíssimas coisas duras sobre os resultados da sola scriptura. Porém, antes de nos felicitarmos por termos evitado
aquele erro, nós católicos devememos, primeiramente, refletir longamente sobre
o porquê de a vida cristã ter dado oportunidade para uma confusão tão
destrutiva. Muitíssimos líderes católicos do clero – especialmente, mas de
nenhum modo apenas eles – viviam a fé que professavam com um cinismo visível. A
primeira lição de Gregory, pois, é que o modo pelo qual nós vivemos a nossa
vida interessa e muito. O fracasso em se praticar a caritas tem consequências para nossa unitas. Era assim naquele tempo e é assim ainda hoje.
O
Professor Gregory, contudo, não para por aí. Ele está apenas aquecendo.
O
enfoque dos reformadores no sola
scriptura buscava fechar a lacuna entre a pregação cristã e a prática. Mas
tal princípio falhou porque acabou por abrir uma caixa de Pandora de novos
problemas. Interpretações rivais da Escritura, na verdade, intensificaram a
confusão. Luteranos liam a Escritura de uma maneira; já os calvinistas, de
outra. Havia ainda diversos tipos de anglicanos, anabatistas, batistas,
puritanos, pietistas, metodistas e quakers que divergiam em incontáveis casos.
Gregory
também menciona os filósofos seculares que acabaram dando continuidade a tudo
isso. No lugar da sola scriptura, o
iluminismo oferecia a sabedoria: a sola
ratio. De Descartes, passando por Hobbes, Spinoza, Rousseau, Kant, Hume,
Hegel e outros, até Heidegger, Levinas e seus sucessores, deu-se início ao
grande ‘fim da linha’ para a religião revelada e suas tradições e a uma busca
da verdade que estivesse fundamentada apenas na razão humana.
Mas
Gregory mostra que os filósofos não se saíram muito melhor que os reformadores.
Ideias rivais proliferavam. A verdade e as respostas para as grandes questões
da vida continuaram a ser debatidas. Mais recentemente, Nietzsche, Foucault e
os pós-modernistas foram honestos o suficiente para afirmá-lo, e com isso
desprezavam tanto o iluminismo quanto o cristianismo. O resultado disso pode
ser visto no espírito de ironia e ceticismo difundido hoje.
Conforme
Gregory explica, o caos metafísico de nossa cultura contribuiu para a formação
de nossa política, economia e ciência. Não há nada na vida cotidiana que tenha
ficado intacto.
Politicamente
os líderes da Reforma voltaram-se para os governantes temporais para se
protegerem do papado, alimentando com isso o crescimento do estado secular
moderno. Papas e bispos, que outrora haviam sido um contrapeso para o poder
secular, descobriram que na nova ordem eles possuíam muito menos influência
sobre os reis. Os primeiros Estados modernos passaram décadas em guerra uns
contra os outros, evidentemente devido a diferenças teológicas. Mas na verdade,
igrejas e Estados usavam-se mutuamente para os seus fins eminentemente
práticos. Os Estados agarraram a chance de expandir o seu poder e o clero
buscava proteção e apoio da parte do Estado.
O
resultado foi um banho de sangue e a exaustão tanto do ponto de vista militar
quanto do ponto de vista metafísico. A vida intelectual e a prática religiosa
da Idade Média haviam estado incrivelmente unidas. Em um monastério ou em uma
universidade escolástica, a busca pelo saber integrava-se organicamente com a
busca pela virtude. Mas as novas universidades do período pós-Reforma cada vez
mais passavam do controle eclesiástico para o secular. Colocaram a teologia em
uma faculdade separada e de pouco importância, dispensando suas energias para o
treinamento de profissionais e cientistas que pudessem servir às ambições do
crescimento comercial dos Estados.
Ao
ler Gregory, podemos ver que grande parte da história da primeira época da
Idade Moderna nada mais é do que a história de como o mercantilismo e o mercado
suplantaram a Igreja como forças de ordem da vida comum. As primeiras
experiências no campo da tolerância religiosa foram claramente defendidas por
razões comerciais. Desgastados com disputas religiosas que pareciam eternas, os
burgueses do início da República Holandesa pararam de requerer o título de
membro de sua igreja oficial (protestante) e aceitavam de bom grado mercadores
e artesãos de todas as crenças. Inglaterra, América e outros Estados seguiram o
exemplo. Eles reconheciam a religião como um bem público, mas reduziram-na, com
efeito, a uma escolha privada, enquanto que – na prática – reverenciavam o
comércio como um objetivo nacional.
A
Reforma também teve implicações na ciência e na tecnologia. Com graus variáveis
de autoconsciência, eles mudaram o modo pelo qual a cultura ocidental concebia
a natureza e todo o mundo material.
Por
exemplo: ainda hoje, mesmo que os católicos sejam formados pelos sacramentos,
nós continuamos vivendo em um mundo material cheio da presença de Deus. Tanto
para o católico medieval quanto para o moderno, o mundo material é um meio para
a graça divina. Já o desdém dos reformadores para com as obras e os sacramentos
criou, inevitavelmente, uma fé mais voltada para o ego, uma experiência
abstrata.
Como
detalha Gregório, quando os sacramentos deixam de ser patrimônio público para
se tornarem práticas privadas, a mudança cultural torna-se inevitável. Os
ocidentais costumavam crer que o mundo fazia parte de um cosmos espiritual, mas
após a Reforma, aquela confiança deixou de ser compartilhada. Consequentemente,
os mercadores modernos, as universidades e os intelectuais desenvolveram o
hábito de ver a matéria como espiritualmente inerte, o que quer dizer que ela
está disponível para ser manipulada a fim de que possa servir aos desejos
humanos.
Mas
a ciência moderna nunca provou e nunca poderá provar empiricamente que a
natureza é espiritualmente inerte. Enquanto os secularistas (ou
fundamentalistas religiosos) insistirem nisso, eles serão ideólogos, não cientistas.
Os católicos sempre acreditaram que Deus age nas causas naturais e através
delas. Ele revelou-Se a nós em Seu Filho, Jesus Cristo. Porém Deus também
existe de forma absoluta fora da Criação. Ele é completamente Outro. Ele não é
meramente uma Fada Celeste maior ou o Super-Ser nos céus. Em outras palavras, o
Deus cristão não é o tipo de Deus que pode ser “refutado” por algo que possamos
ver sob o microscópio ou através de um experimento. Embora muitos hoje,
obrigados para com uma metafísica anti-sacramental, insistam que deva haver um
conflito entre a ciência e a religião. Isso é falso. E não precisava ser assim.
De
certa forma, o livro de Gregory poderia receber este subtítulo: “a crise de fé
no ocidente e a razão”. A reforma – de modo sincero, zeloso e com as melhores
intenções – liberou as forças centrífugas que desfizeram a síntese medieval entre
a revelação e a filosofia. Desde então, nossa cultura despencou de uma morte
intelectual para outra, ou buscando romanticamente uma vida espiritual livre de
qualquer autoridade e tradição ou querendo encontrar racionalmente a verdade,
como se os seres humanos fossem autônomos e auto-suficientes. A Reforma nos
custou o grande casamento ocidental que havia entre a fé e a razão – ou seja, a
confiança compartilhada de que a fé é pessoal, mas também comum, e de que a
razão não é contrária à fé, mas a aumenta.
Nesta
história, os católicos cometeram erros terríveis e que custariam caro. Conforme
o que ficou dito, a Reforma aconteceu por uma boa razão. Sempre que o Professor
Gregory argumenta, ele o faz com equilíbrio, com respeito por todas as partes e
com detalhes históricos apoiados em diferenças sutis. São 145 páginas dedicadas
às notas. O relato de Gregory sobre a crise de Galileu é especialmente
interessante. Ele explica como os
líderes da Igreja, tendo compreendido corretamente a ameaça da Reforma para a
metafísica sacramental, agiram de forma exagerada e julgaram mal a importância
de Galileu para a Teologia.
Em
nossos próprios dias, sem dúvida, os católicos continuaram a encontrar muitas
maneiras de difamar a fé. A Igreja precisou de muito tempo para articular sua
própria doutrina em bases teológicas acerca da liberdade religiosa. A crise dos
abusos sexuais deu a muitos padres e bispos uma pedra de moinho para que
amarrassem em seus pescoços e se lançassem ao fundo do mar [nota do tradutor:
conforme disse Jesus em Mt 18:6] por terem machucado inocentes e causado crise
de fé em boas pessoas. Também os leigos católicos comuns deixaram-se ser
colonizados pela avareza, pela anarquia sexual e pelo materialismo da cultura
que os cerca. Em muitas instâncias, se olharmos para o modo pelo qual o
católico americano realmente vive, nós também consumimos, relativizamos e
trivializamos como todo mundo.
Cultivar
a virtude, buscar uma vida de auto-sacrifício, viver alegremente e na plenitude
dos sacramentos não é algo que se possa fazer sozinho. É muito difícil. Precisamos
da graça. Precisamos de companheiros. Precisamos ser ensinados e treinados. Por
isso Deus nos deu a Igreja. Mesmo composta por seres humanos que frequentemente
erram, ela é, não obstante, nossa Mãe e sempre será um dom.
A
moderna teoria política ocidental tenta (ou finge tentar) abster-se de ensinar
moralidade. Devido ao fato de nossa sociedade separar tão veementemente a
verdade da ética, os legisladores modernos tendem a endeusar a privacidade
individual e a autonomia. Mas ao fazê-lo, diminuem a importância social
vivificadora da fé religiosa. Esta “neutralidade” legal não é tão neutra. Ao
alimentar a soberania do indivíduo, nossos líderes públicos abastecem a auto-absorção
do consumidor, a confusão moral e finalmente – na medida em que instituições de
mediação como a família e as igrejas perdem as forças – o poder do Estado. A
Reforma conduziu, em passos graduais, indiretos e de modo completamente involuntário,
àquilo que Gregory chama de “Reino do Tanto-Faz”. É um mundo de
hiperpluralismo, onde o significado é auto-inventado por milhões, e por isso a
sociedade como um todo tem grande fome de significado.
Não
é de se surpreender que os católicos achem estes dias de eleições tão
desagradáveis. Ser católico em 2012, ou pelo menos no ocidente moderno, é viver
no fim de uma longa história. Brad Gregory mostra-nos de modo eloquente um
pouco do que isso significa. Nossos fracassos morais e nossas escolhas
intelectuais tiveram consequências ao longo dos séculos. E agora nossa cultura
está alquebrada.
Mas
não precisava – e não precisa – ser daquele jeito. A Igreja ainda está aqui:
ela ainda nos chama para o arrependimento, ainda nos convoca para os sacramentos.
Neste Ano da Fé ela convida os católicos a uma grande e nova evangelização –
não contra os companheiros cristãos de outras tradições, mas em amizade com
aqueles nossos irmãos. A nossa ambição deve ser consertar uma cultura de
descrença e sanar as políticas desumanas que surgem de tal cultura. E se não
pudermos conseguir isso em acordo com nossos companheiros cristãos, então
podemos pelo menos buscar viver o Evangelho com mais fé. Já é hora, aliás, há
bastante tempo, de fechar a lacuna entre nossas palavras e nossas ações; entre
nossa pregação e nossa prática.
O
Professor Gregory nos lembrou, com uma graça e claridade fora do comum, que não
podemos escapar de nosso passado, mas também não precisamos ser capturados por
ele. Só por isso já vale a pena comprar o livro.
Charles J. Chaput, capuchinho
franciscano, é arcebispo de Filadélfia.
Tradução
William Bottazzini
Original
em: http://www.thepublicdiscourse.com/2012/11/6902/