sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A Terra Plana e Colombo



Imaginem a seguinte situação:

Há um grupo de aproximadamente trinta alunos fitando atentamente o professor. Este, por sua vez, olha para um ponto vazio da sala; o que vai dizer poderá ser chocante para muitos, mas tem que ser dito. Alguém deve fazê-lo! Afinal, não é para instruir que está ali? Sem mais, começa o mestre a enunciar as primeiras palavras da aula:

- Às vezes, queridos alunos, devemos contrariar o senso comum e a palavra das autoridades se quisermos encontrar a verdade e o caminho para o desenvolvimento. E talvez esta seja uma das coisas mais importantes que o navegador genovês Cristovão Colombo tenha nos ensinado.

- Mas, professor, interpela um aluno, não foi ele quem descobriu a América?

- Precisamente. Mas ele impôs-se uma missão que ia além do desejo de encontrar uma rota alternativa para as Índias (o que acabou levando acidentalemente à descoberta de um novo continente). Jamais imaginaremos por quantas dificuldades teve que passar para que pudesse atingir seus objetivos. Colombo precisou combater diversos mitos que permeavam a imaginação de seus contemporâneos. Estes mitos restringiam a ação dos homens e os deixavam estáticos diante do mundo que os cercava. Colombo precisou enfrentar não apenas os perigos reais que pairavam sobre o mundo das navegações, mas também teve que combater seus próprios medos e crenças.

- Certo, professor. E quais eram estes "medos e crenças" e qual era o outro objetivo de Colombo?

- Os navegadores do século XV (século de Colombo) acreditavam que o Atlântico, o oceano temido por todos por ser-lhes desconhecido, estava infestado de toda sorte de animais grotescos e terríveis, como dragões e outras bestas gigantes. Ademais, era crença corrente de que a Terra era plana, como um disco, e que ao se afastar muito da costa, poder-se-ia precipitar-se no abismo, no fim do mundo. Colombo, porém, após ter feito algumas observações, chegara a conclusão de que a Terra era esférica e estava disposto a prová-lo. Para tanto, precisaria combater diversas autoridades civis e eclesiásticas que insistiam em apoiar-se em antigos escritos para sustentar a tese de que a Terra era plana...

Vamos interromper nossa história por aqui antes que sentimentos nostálgicos comecem a brotar em nossos leitores. Estou quase certo que alguém aí já participou de uma ou mais aulas nos moldes acima, seja na escola, no cursinho ou até mesmo na faculdade.

Os homens da Idade Média acreditavam na Terra plana...Eis a tese que está em pauta.

Contudo, é interessante darmos uma olhada no que a historiografia mais recente tem a nos dizer a este respeito. Não que os livros antigos de história não sejam bons! Não é isso! Eles podem conter sim informações muito preciosas, mas em alguns aspectos talvez devessem passar por uma ligeira atualização...

Ná década de noventa foi publicado nos Estados Unidos um livro chamado Inventing the Flat Earth (Inventando a Terra Plana) de autoria de Jeffrey Burton Russell. Este livro trouxe uma nova luz a este capítulo da história e nos permite uma leitura bem mais coerente dos acontecimentos do século XV, o século das navegações.

E qual é a tese principal de Russell em seu livro (tese esta que ganhou adeptos de peso, como por exemplo o professor Thomas Woods, David Lindberg e Cecil Jane)?

A história que diz que antes de Colombo acreditava-se que a Terra era plana é um mito criado por historiadores do século XIX; eis a tese de Russell.

Vejamos no que se sustentam as afirmações de Russell.

Primeiramente o autor nos lembra que já na Antiguidade o homem sabia que a Terra era uma esfera. O grego Eratóstenes, que viveu cerca de duzentos anos antes de Cristo, havia medido, com cálculos trigonométricos, a circunferência da Terra. Para tal, ele partiu do pressuposto de que a Terra era uma esfera. Ademais, eram comuns na antiguidade o uso de um globo para a representação de nosso planeta, assim como o fizera em Roma Crates de Malos no segundo século antes da era cristã. Ptolomeu, que viveu no segundo século depois de Cristo, também concebeu uma Terra esférica em seu modelo de universo. Afora estes, a esfericidade era o ponto de vista mantido por autores como Aristóteles, Platão e Parmênides, os quais exerceram grande influência na história do pensamento.

Durante o período denominado de Alta Idade Média, muitos dos Pais da Igreja, escritores que possuíam (e possuem) uma grande influência no mundo cristão, simplesmente ignoraram quaisquer divagações geográficas. Não obstante, em contraponto com muitos cristãos de nossos dias, os Pais da Igreja sempre procuravam entender a Bíblia à luz dos conhecimentos desenvolvidos até então. Quando um ensinamento literal da Bíblia era colocado em xeque diante de uma evidência da razão, os Pais da Igreja tratavam de interpretar as Escrituras de forma alegórica, retendo as verdades morais ali contidas. Assim, é infundada a tese de que o apego fanático dos cristãos medievais a determinadas partes da Bíblia que parecem sugerir uma terra plana teria obstruído o avanço científico na geografia. Lembremos que séculos antes o homem já sabia da esfericidade da Terra... Contudo, muitos autores medievais amplamente lidos na cristandade, como Beda, Isidoro de Sevilha e Rabano Mauro, sustentaram a esfericidade da Terra.

Quando chegamos ao período chamado de Baixa Idade Média, ou seja, cada vez mais às vésperas das Grandes Navegações, vemos que diversas autoridades do período, eclesiásticas ou não, sustentavam veementemente a esfericidade da Terra, como, por exemplo, Tomás de Aquino, um dos autores mais lidos e recomendados de toda a Idada Média. Deste período, poderíamos citar ainda como defensores da Terra esférica Roger Bacon, Nicole Oresme e Jean Buridan. Um livro bastante popular deste período chamado Image du Monde também declara explicitamente a esfericidade da Terra. Isso para não mencionarmos Dante Alighieri que, em seu magnum opus Divina Comédia, também havia pensado em uma Terra esférica.

Abaixo, compartilho uma imagem retirada do livro de um dos maiores medievalistas brasileiros, Hilário Franco Júnior, chamado Idade Média: o nascimento do Ocidente. Aqui há uma representação de Cristo geômetra, o Criador do mundo. Podemos ver que Cristo cria uma Terra esférica. Percebam que a data desta ilustração corresponde exatamente ao período da Baixa Idade Média que estamos avaliando.



Esta imagem se encontra na página 165 do livro supracitado.

Vemos, pois, que antes de Colombo a esfericidade da Terra não era nenhuma novidade. Era esta, pois, a crença geral. Crença esta já difundida até mesmo entre os marinheiros portugueses que já singravam pelos mares "nunca d'antes navegados" antes de Colombo. À época de Colombo, nenhuma pessoa minimamente instruída na Europa concebia um modelo da Terra plana.

Para evitar ser chamado de "desonesto" vou dar exemplo de dois autores que viveram no período medieval e que sugeriram um modelo de Terra plana: Lactâncio e Cosme Indicopleustes. O primeiro viveu entre os séculos terceiro e quarto; o segundo, no século sexto. Antes que alguém apressadamente salte da cadeira e exclame: "Ahá! Está vendo, dois cristãos que acreditavam na Terra plana! Será que eles não exerciam nenhuma influência sobre a cristandade e no pensamento científico?" A resposta é um sonoro não. A leitura de Lactâncio era desaconselhada pela Igreja, o que o deixava à margem do mundo cristão, sem muita expressão. Ademais, Lactâncio escrevia de forma alegórica. Quanto a Cosme, ele apenas escreveu em grego (língua praticamente desconhecida entre os cristãos ocidentais) e somente foi traduzido para o latim no século XVIII. Destarte, vemos que os dois principais arautos da Terra plana não possuíam qualquer influência no Ocidente medieval.

Embora devamos reconhecer que Colombo fora um grande navegador e bastante audacioso, não podemos tributar-lhe o mérito de ter provado a esfericidade da Terra. E por que não? Porque, conforme vimos, todo mundo já sabia que a Terra era esférica...

Mas, então qual o motivo de as autoridades serem tão reticentes em patrocinar a empreitada marítima de Colombo?

Grosso modo podemos dizer que Colombo havia subestimado o tamanho da esfera que ele estava disposto a circum-navegar. Para ele, a Terra não era "tão grande" assim. Neste sentido, muitos o advertiam dizendo que a Terra era, de fato, muito maior do que ele supunha, e que ele poderia navegar indefinidamente sem encontrar qualquer lugar para reabastecer a sua tripulação com mantimentos. O risco de eles padecerem de sede e de fome parecia extremamente alto até mesmo para o investidor mais arrojado do período. Felizmente, Colombo encontrou patrocinadores para a sua empresa marítima e um pedaço de terra "brotou" no Atlântico no meio de seu caminho para as Índias.

Outrossim, ainda resta uma pergunta no ar: quem, afinal, estabeleceu este "erro" da Terra plana e com qual objetivo?

Primeiramente cabe lembrar que durante as disputas entre ciência (aliás, havia bem pouco de ciência, como veremos em um próximo trabalho) e religião da Renascença  a questão da Terra plana jamais fora levantada pelos opositores da Igreja. Imaginemos como isso teria sido uma "carta na manga" para os rivais da Igreja: "Ah vocês sempre ensinaram que a Terra era plana até Colombo provar o contrário!". No entanto,  a este respeito, o que temos é apenas silêncio. O mesmo com os iluministas do século XVIII. Embora os iluministas odiassem a Igreja Católica e tenham inventado uma série de coisas acerca do período em que a Igreja mais teve influência, a Idade Média, eles jamais levantaram a hipótese de que a Igreja defendera alguma dia a teoria de que a Terra fosse plana. E vejam que eles teriam tido o maior prazer em fazê-lo, já que eram os guardiães da razão...

A idéia da Terra plana medieval aparece pela primeira vez em escritos de história do século XIX (quase quatrocentos anos após Colombo!). Foram os escritores Irving e Latronne os responsáveis pela disseminação do mito nos meios acadêmicos. O que acontece é que o século XIX, principalmente nos Estados Unidos, fora bastante conturbado no que se refere às disputas entre o dueto ciência/filosofia e o cristianismo. É este o século da teoria darwinista da evolução e das idéias libertárias de Marx. Os secularistas, ao serem criticados em alguns pontos de suas teorias por autoridades cristãs, trataram de "investigar" o período onde o cristianismo mais havia tido influência no cotidiano das pessoas. Ora, este período é justamente a Idade Média. Assim, os secularistas tinham que criar a idéia de uma Idade Média atrasada, fanática e irracional como antítese do período em que viviam; este sim, avançado e racional, livre das amarras da religião. Então, pura e simplesmente criaram uma Igreja medieval que deveria ter sido tão irracional a ponto de sugerir (e até defender como verdade de fé, e fé ortodoxa!) que a Terra fosse plana. Estes secularistas não tinham qualquer evidência para tal. O grande objetivo era encontrar um pressuposto histórico que desmoralizasse a Igreja caso esta se pronunciasse em assuntos relativos à ciência; como não encontraram, tiveram que criá-lo.

E assim, paulatinamente, este mito de que na Idade Média acreditava-se em uma Terra plana foi sendo incorporado em nossas escolas e livros didáticos, fomentando cada vez mais uma pretensa guerra entre ciência e religião, sempre tendo a ciência como a mocinha e a religião (principalmente a Igreja Católica) como a vilã.

Infelizmente a mentira agarra-se a nossa mente e não a solta, a menos que estejamos dispostos a nos desvencilhar dela. Por isso, muitos hoje ainda insistem em ensinar que na Idade Média acreditava-se que a Terra era plana, mesmo sem haver qualquer prova para isso.

É preciso coragem para admitir a verdade.

Espero que este modestíssimo trabalho tenha despertado em vocês a curiosidade de se aprofundarem mais neste assunto e que vocês possam contribuir para que a aula de história que abre nosso texto tenha um tom diferente. Aí sim vamos estar contribuindo, e muito, para a ciência e para a história.

William Bottazzini Rezende

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