À primeira vista a instauração do Tribunal do Santo Ofício, conhecido popularmente por “Inquisição”, parece um desvio claro por parte da Igreja daquela doutrina cristã acerca da liberdade e do amor universal propagada ao longo dos séculos. Tem-se a impressão de se estar diante de um aparato judiciário criado para cercear a liberdade de crença e de ação das pessoas: era o auge do controle social e da mente das pessoas através do fanatismo e do temor, por parte do clero, de perder a sua posição hegemônica na guia das almas no medievo.
Esta análise sucinta, além de ser bastante superficial e partir de premissas equivocadas, não leva em conta o outro lado da controvérsia: os denominados hereges. Afinal, quem eram eles? O que ensinavam? O que queriam? É para responder a essas perguntas que o professor da Universidade de São Paulo, Nachman Falbel escreveu o livro, lançado pela editora Perspectiva, “Heresias Medievais”, que é sujeito de nossa análise.
Logo no início de sua obra, o autor trata de lembrar ao leitor que foi nos séculos XII-XIII que os grupos heréticos mais se espalharam pela Europa ocidental. Ademais, o autor tem o cuidado de nos remeter ao significado da palavra heresia, advinda do grego hairein, isto é, escolher (FALBEL, 2007, p.13). Destarte, herege é aquele que se recusa a acreditar na doutrina cristã em sua totalidade, mas escolhe unilateralmente em que acreditar. Para a mentalidade da época, a heresia era considerada o pior dos crimes e antes de a Igreja pronunciar-se a respeito de como deveriam ser tratados os que se desviavam da doutrina católica, o poder secular e a população em geral já buscavam punir, muitas vezes de forma arbitrária e sumária, os culpados. Neste sentido, lembra-nos Falbel que “os abusos cometidos na perseguição aos heréticos, bem com as pressões exercidas sobre eles, forçaram a institucionalização das formas de repressão (...)” (2007, p. 17).
Após uma breve apresentação, o livro avança para a análise de algumas heresias de maior repercussão na Idade Média e começa por Pedro de Bruys no século XII. Segundo Falbel, Pedro de Bruys admitia como livros sagrados apenas os Evangelhos e punha em dúvida a autenticidade dos outros escritos neotestamentários. De Bruys ainda rejeitava a hierarquia e toda a estrutura visível e material da Igreja, afirmando que a verdadeira igreja deveria ser uma igreja espiritual fundamentada somente na fé nos Evangelhos. Deste modo, ficam anulados todos os sacramentos e mesmo o batismo não deve ser administrado às crianças, pois não teriam elas uma fé consciente (FALBEL, 2007, pp. 26-27).
Após Pedro de Bruys surge o monge Henrique, que propaga idéias semelhantes às de Bruys, mas enquanto este aceitava a doutrina acerca do pecado original, aquele a negava, fazendo com o que o batismo fosse visto apenas como uma espécie de identificação com a fé cristã (FALBEL, 2007, p. 28). Henrique também adotou a posição de que o matrimônio não seria um sacramento, mas um mero acordo entre duas partes, tornando desnecessário o cerimonial eclesiástico. Na visão de Henrique, a Igreja deveria ser pobre e desfazer-se de qualquer suntuosidade. E mais: não haveria comunhão dos santos e nem intercessão, pois os mortos nada poderiam fazer pelos vivos (FALBEL, 2007, p. 29). Falbel reconhece que:
O Monge Henrique não foi um fenômeno isolado no tipo de heresia religiosa que se apega ao Evangelho e chega muitas vezes a negar por completo a Igreja, opondo-se ao clero e abandonando-se a um fervor extremado, próprio dos que pensam estar agindo em nome de uma nova verdade religiosa (2007, p.30).
A heresia dos cátaros (termo que em grego significa “puro”), que acreditavam em um princípio Mau e em um princípio Bom, é amplamente estudada ao longo do capítulo segundo. O autor comenta que o estudo da doutrina cátara não parte dos escritos dos próprios cátaros, dado pouco sobrou do que fora produzido por eles, mas de fontes como os processos da Inquisição e os escritos polêmicos que os combatiam (FALBEL, 2007, p. 37). Os cátaros tiveram uma ampla propagação ao longo do século XII e a seita organizava-se em bispos e diáconos, de modo semelhante ao da Igreja Católica. Entre os seus pontos doutrinários mais relevantes, podemos destacar a crença a) de que a matéria era má, b) de que as almas transmigravam de um corpo a outro e até mesmo de um corpo humano a um animal e c) de que o homem deveria restaurar o mundo em uma comunhão perfeita com Deus. Ademais, os cátaros possuíam horror à procriação (pois isso causava o aprisionamento do espírito na matéria), condenando o casamento e favorecendo a destruição da família. Aceitavam a união livre e a restrição de nascimentos, o que leva Falbel a afirmar que esta posição “foi uma antecipação da liberdade sexual absoluta” (2007, p. 56). Também proibiam o consumo de carne e eram favoráveis ao suicídio (FALBEL, 2007, p. 41). Podemos perceber que esta seita representava um sério fator de desagregação podendo levar a sociedade ao caos. Os seguidores do catarismo estavam divididos em Perfeitos, que viviam isolados da grande massa, e os Crentes, que compreendiam os demais fiéis.
E como reagiu a Igreja diante da grande ameaça representada pelos cátaros? Em primeiro lugar, Falbel lembra que o próprio povo e as autoridades passaram, de modo autônomo, a perseguir os seguidores da heresia, o que suscitou vivas repreensões de eminentes personagens, com São Bernardo. Para a Igreja, o mais importante era tentar persuadir o herege de seu erro e fazê-lo retornar ao catolicismo. Apenas quando este recurso falhava é que se deveria usar a força.
O Papa Inocêncio III preferia a conversão à perseguição. Os cátaros, porém, não se convertiam facilmente, uma vez que a crescente propagação da heresia no Sul da França e no Norte da Itália fazia com que acreditassem no predomínio dela sobre a Igreja Católica. (Falbel, 2007, p.47).
A persistência dos cátaros em sua doutrina fez com que fosse movida uma cruzada contra eles, chamada de “Cruzada Albigense”, que conseguiu debelá-los e aniquilar definitivamente o perigo do Sul da França, embora eles houvessem conseguido sobreviver em outras regiões por cerca de mais alguns séculos.
Outra heresia surgida no período e que grandes problemas causou à Sé Romana foi a dos valdenses, fundada por Pedro Valdo. Para eles, a Igreja fora incorrupta até Constantino, tendo-se degenerado após a era constantiniana por começar a acumular bens e haver tornado-se rica e poderosa. Os valdenses também recomendavam grandemente a leitura individual da Bíblia, tendo mesmo traduzido os textos bíblicos para o vernáculo. Negavam o Purgatório, o culto dos santos e a oração pelos defuntos. Assim como a Igreja Católica, a sua organização era baseada no epíscopo, no presbítero e no diácono. Falbel lembra que os valdenses, apesar das perseguições, conseguiram atravessar os séculos e chegar até os nossos dias (2007, p. 65).
No século XIII surgiram os pseudo-apóstolos. Estes hereges atacavam o Papado e, como os valdenses, acreditavam que a Igreja havia se corrompido após Constantino. Seria entre eles que deveria ser levantado um líder verdadeiro que guiaria a Cristandade até o fim dos tempos. Aqui é interessante notar, ainda, que estes hereges criam que a cada igreja e anjo relatados nos primeiros capítulos do livro do Apocalipse corresponderia uma era (ou fase) da igreja com seu respectivo representante, sendo que os últimos, o anjo e a igreja de Filadélfia do livro de São João, deveriam ser identificados com eles mesmos, os pseudo-apóstolos, e com o último papa da história (FALBEL, 2007, p. 70).
Outra personagem do século XII que, graças as suas idéias, deu azo ao surgimento de inúmeras heresias durante a Idade Média, foi o abade Joaquim de Fiore. Para Joaquim, a história seria dividida em três idades: a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo. Sendo a obediência servil, o conhecimento e o temor traços da primeira; a servidão filial, a sabedoria e a fé os traços da segunda; e, por fim, a liberdade, o amor e a inteligência plena os traços da última. Neste sentido, a hierarquia da Igreja tornar-se-ia desnecessária, e, sob o já presente profeta Elias, surgiria uma igreja pobre e espiritual (FALBEL, 2007, pp. 78-79).
Falbel encerra a sua análise sobre as heresias medievais com os Beguinos. Surgidos no século XIII e influenciados pelas doutrinas do abade Joaquim de Flores e pelos comentários do Apocalipse de Pedro João Olivi. Consideravam que estava por vir uma era de ouro da Igreja, que deveria substituir à do presente. Também faziam votos de pobreza. Aparentemente foram eles os primeiros a associar a Igreja católica com a igreja carnal, a prostituta, a Babilônia, citada no Apocalipse. João Olivi seria o portador da verdadeira doutrina, e não a Igreja (FALBEL, 2007, p.89).
Em suma, a obra de Falbel nos permite encontrar na Idade Média todos os elementos que, posteriormente contribuiriam para a formulação das doutrinas de Wycliff, Huss, Lutero e de outros protestantes surgidos nos séculos XVI e seguintes.
Referência.
FALBEL, Nachman. Heresias medievais. São Paulo: Perspectiva, 2007. 118 p.
Escrito por William Bottazzini Rezende
Escrito por William Bottazzini Rezende
Nenhum comentário:
Postar um comentário