EXTRA ECCLESIAM NULLA SALUS

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Comentário de São Vicente de Lérins sobre as armadilhas dos hereges


Gostaria de compartilhar com todos este trecho da obra Commonitorium de São Vicente de Lérins [capítulos 25 e 27], que fora escrito em meados do século V.

Que este texto nos ajude a sermos mais cautelosos em relação aos "lobos" que querem destruir a verdadeira Fé utilizando a própria Bíblia para este pérfido intento.

Que a Virgem Santíssima não cesse de interceder por nós e que o Senhor abençoe a todos!

William Bottazzini.

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Os hereges recorrem à Escritura

Mas alguém dirá: acaso os hereges não se servem dos testemunhos das Sagradas Escrituras?

É certo que se servem. E com que apaixonada veemência! É possível vê-los passar de um livro a outro da Santa Lei: desde Moisés aos livros dos Reis, desde os Salmos aos Apóstolos, desde os Evangelhos aos Profetas. Em suas assembléias, com os estranhos, em privado, em público, nos discursos e nos escritos, durante as refeições e nas praças públicas, é raro manterem alguma coisa se antes não a houverem revestido com a autoridade das Sagradas Escrituras.

Basta ler as obras de Paulo de Samósata, de Prisciliano, de Eunômio, de Joviniano e de todas as outras pestes; imediatamente  se nota o acúmulo infinito de textos bíblicos: quase não há página que não esteja colorida ou ornamentada com passagens do Antigo e do Novo Testamento. Contudo, quanto mais buscam ocultar-se sob a sombra da Lei Divina, mais necessário ainda é estarmos de guarda e temê-los.

Com efeito, eles sabem que suas exalações pestilentas, nuas e diretas, não encontrariam o apoio de ninguém; por isso, perfumam-nas com o aroma da palavra celestial, já que aquele que facilmente repudiaria um erro humano, não está disposto a depreciar com tanta facilidade os oráculos divinos.

Os hereges fazem a mesma coisa que aqueles que, para suavizar o amargor dos remédios destinados às crianças, untam com mel a borda do copo; as crianças, com a ingênua simplicidade de sua idade, uma vez que tenham provado o doce, engolem, sem suspeitas e sem temor, também o amargo. Do mesmo modo agem aqueles que mascaram com nomes medicinais ervas nocivas e sucos venenosos, para que ninguém, ao ler a etiqueta, possa suspeitar de que se trata de venenos, não de remédios para a saúde.

A este propósito, clamava o Salvador: Guardai-vos dos falsos profetas que vêm até vós disfarçados em pele de ovelhas, mas, por dentro, são lobos ferozes. Que outra coisa são estas peles de ovelhas, senão as palavras dos Profetas e dos Apóstolos, com as quais estes mesmos, com mansa simplicidade, revestiram com um véu o Cordeiro imaculado que tira o pecado do mundo? Por outro lado, quem são os lobos vorazes, senão as doutrinas selvagens e enraivecidas dos hereges, que infectam o redil da Igreja, para desgarrar, da melhor maneira possível, o rebanho de Cristo? Para que possam surpreender mais facilmente as ovelhas incautas, mascaram seu aspecto de lobos, embora conservando a sua ferocidade, revestindo-se com frases da Lei Divina como que com um véu, a fim de que, ao sentir a brandura da lã, as ovelhas não suspeitem de seus dentes agudos.

Mas, o que diz o Salvador? Por seus frutos os conhecereis. Ou seja, quando já não mais estão satisfeitos em citar e predicar as palavras divinas, começam a explicá-las e a comentá-las, então se tornarão manifestos sua amargura, sua aspereza e sua raiva; então se espalhará um novo fedor e aparecerão as novidades ímpias; então se verá pela primeira vez o cercado arrancado e transladados os limites estabelecidos pelos pais; ultrajada a fé católica e o dogma da Igreja feito em pedaços.

Eram pessoas desta ralé que eram fustigadas pelo Apóstolo em sua segunda carta aos coríntios: Estes falsos apóstolos são operários enganosos, que se disfarçam de Apóstolos de Cristo. O que significa a frase “se disfarçam de Apóstolos de Cristo”? Os Apóstolos citavam textos da Lei Divina, os falsos apóstolos faziam o mesmo; os Apóstolos se apoiavam na autoridade dos Salmos e dos Profetas, e os falsos apóstolos  faziam o mesmo. Entretanto, quando estes começaram a interpretar de maneira diferente os mesmos textos, então se distinguiram os sinceros dos falsários, os genuínos dos artificiais, os retos dos perversos, em uma palavra, os verdadeiros Apóstolos dos falsos. E não é de se estranhar – explica São Paulo – pois o mesmo Satanás se transforma em anjo de luz. Assim, não é de se surpreender que seus ministros se transfigurem em ministros de justiça.

Segundo o ensinamento do Apóstolo, toda vez que os falsos apóstolos, os falsos profetas, os falsos doutores citam passagens da Lei Divina com as quais, interpretando-as mal, tentam sustentar os seus erros, não resta dúvida de que seguem uma tática pérfida de seu autor e mestre, o qual certamente não a haveria utilizado, se não houvesse compreendido que não há melhor caminho para induzir os fiéis ao engano, do que introduzir fraudulentamente um erro cobrindo-o com a autoridade das palavras divinas.

Como vencer as insídias diabólicas dos hereges

Depois de tudo o que dissemos, é lógico perguntar: se o diabo e seus discípulos – pseudo-apóstolos, pseudo-profetas, pseudo-mestres e hereges em geral – estão acostumados a utilizar as palavras, as sentenças e as profecias da Escritura, como deverão comportar-se os católicos, os filhos da Madre Igreja? O que deverão fazer para que possam distinguir, nas Sagradas Escrituras, a verdade do erro?

Os católicos terão a verdadeira preocupação em seguir as normas que, no começo destas notas, escrevi e que foram transmitidas por doutos e piedosos homens; ou seja, eles interpretarão o Cânon divino das Escrituras de acordo com as tradições da Igreja universal e as regras do dogma católico; na mesma Igreja Católica e Apostólica, deverão seguir a universalidade, a antiguidade e a unanimidade de consenso.

Por conseguinte, se acontecesse que uma fração se rebelasse contra a universalidade, que a novidade se levantasse contra a antiguidade, que a dissensão de um ou de poucos se elevasse contra o consenso de todos ou, ao menos, de um número muito grande de católicos, dever-se-ia preferir a integridade da totalidade à corrupção de uma parte; dentro da mesma universalidade, será preciso preferir a religião antiga à novidade profana; e, na antiguidade, é necessário antepor à temeridade de pouquíssimos os decretos gerais, se os houver, de um concílio universal; caso estes decretos não existam, dever-se-á seguir aquilo que mais se aproxima deles, ou seja, as opiniões concordes de muitos e grandes mestres.

Se, com a ajuda do Senhor, observarmos com fidelidade e solicitude estas regras, conseguiremos descobrir sem grande dificuldade, e a partir de sua mesma fonte, os erros nocivos dos hereges.
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Tradução de William Botazzini e texto, em inglês, disponível em: www.newadvent.org/fathers/3506.htm

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