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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Dica de Leitura: RELIGIÃO E CIÊNCIA NO RENASCIMENTO


Embora sejam pensadas como opostas atualmente, na verdade Religião e Ciência estiveram imbricadas por um longo período. O gérmen da razão costuma ser depositado na Grécia Antiga e no Renascimento. Mas, especialmente em relação a este último, é comum vermos nos manuais de história uma definição que assim poderia ser resumida: no Renascimento surge uma mentalidade preocupada com a razão, uma mentalidade completamente oposta à dos medievais, que, devido a sua visão estritamente teocêntrica, tendia a recorrer aos mitos para explicar os fenômenos naturais. É sobre a inautenticidade desta afirmação que se baseia a obra de Klass Woortman, Religião e ciência no Renascimento, publicada pela editora da Universidade de Brasília. Woortman mostrará como a religião, mais especificamente a magia, pode ter sido a mola propulsora para os desenvolvimentos técnicos tanto do Renascimento quanto de épocas posteriores. Segundo o autor,

se a ciência e a religião são hoje, em boa medida, pensadas como opostas, a ciência ocidental constituiu-se no interior do campo teológico, ou pelo menos em estreita relação com ele, e o Renascimento é um momento privilegiado para o exame desse processo (WOORTMAN, 1997, p. 11)

Para Woortman, grandes nomes da ciência, como Copérnico, Newton e Kepler, embora tivessem dado independência ao pensamento científico, partiram, muitas vezes, de princípios místicos (1997, p.15).
Enganam-se muito os que pensam que os pensadores renascentistas eram desprovidos de sentido místico. Após a derrocada a filosofia aristotélico-tomista, ressurge nos séculos finais da Idade Média, um vivo interesse pelo neoplatonismo e pela magia. Segundo Woortman, “O ressurgimento do platonismo reforçava a confusão entre espírito e matéria. O mundo possui uma alma que opera incessantemente sobre o universo” (1997, p. 19). Assim, os elementos podiam transformar-se em outros: é aqui que reside o interesse dos alquimistas. Deste modo, atesta Woortman, “a magia espicaçou a imaginação científica” (1997, p. 19).
Os laços entre a teologia e a chamada “filosofia natural” começam a se dissolver lentamente e Woortman chama mesmo a atenção para a tolerância da Igreja em relação às novas descobertas e ao pensamento heterodoxo (1997, pp. 21-23).  Para o autor, “O Renascimento foi, pois, um período de considerável tolerância para com a efervescência intelectual da época” (WOORTMAN, 1997, p. 24). Embora este período seja amiúde retratado como “antropocêntrico”, Woortman afirma que “No pensamento moderno a natureza é mais determinante que o homem” (1997, p. 27). O que trará conseqüências funestas nos séculos subseqüentes.
O autor constata taxativamente que “havia, pois, uma aliança entre a matemática e o misticismo” (WOORTMAN, 1997, p. 34). Afinal, mesmo descobertas importantes de Copérnico e Kepler, por exemplo, não eram baseadas em dados empíricos, já que eram refutadas pelas tecnologias então disponíveis, mas em crenças mágicas.

Sob tais influências, Copérnico desenvolveu um ponto de vista de que o Universo é inteiramente composto de números. Em decorrência, tudo que fosse matematicamente verdadeiro seria também astronomicamente verdadeiro. O princípio da relatividade dos valores aplicava-se tanto ao domínio humano quanto a qualquer outra parte do mundo astronômico. A “...nova visão do mundo não era mais que uma redução matemática...em um sistema simples, belo e harmonioso, com o encorajamento propiciado pelo platonismo (WOORTMAN, 1997, p. 34).

No entanto, as críticas à filosofia aristotélico-tomista já se faziam notórias antes da Renascença. Como exemplo, temos o nominalismo de Guilherme de Occam e diversas especulações que punham em xeque a conceituada explanação ptolomaica da astronomia, como a Nicolau de Oresme, que mostrara através de argumentos físicos que é a Terra que se move em torno do Sol, não o contrário. Portanto, “bem antes de Copérnico, e mais ainda de Galileu, portanto, já circulavam idéias ‘modernas’ formuladas por teólogos, sem maiores oposições por parte da Igreja” (WOORTMAN, 1997, p. 39). O que apenas realça a tese de que Galileu não fora condenado por suas descobertas, mas por seu temperamento.
Contudo, as novas especulações astronômicas não deixaram de exercer influência nas outras áreas do pensamento. “Tudo é colocado em dúvida; talvez tenha sido este o sentido do Renascimento, época das audácias. O homem não tem mais o que o dirija; talvez essa tenha sido a revolução” (WOORTMAN, 1997, p. 54. Destaque do autor). Daqui pode-se depreender, entre outras coisas, o êxito da Revolução Protestante, que, com a Revolução Francesa e a Revolução Russa, terminaria por enterrar definitivamente o modus vivendi medieval. Voltando ao Renascimento, perceberemos que se o homem descobre que no céu as coisas podem não ser conforme lhe haviam ensinado até então, ao mesmo tempo lança um olhar desconfiado para a Terra. Aqui começam as Navegações, a era das grandes descobertas e do redesenho do mapa mundi do período.

O duplo descentramento do mundo, trazido pela astronomia copernicana e pela geografia pós-colombiana teve, efeitos radicais. Era inevitável que a visão do mundo e a visão do Homem se transformassem de maneira fundamental, e que a noção de cristandade se abrisse à de humanidade, sugerindo o surgimento de uma nova ciência do Homem. Mas essa transformação na concepção do Homem, do mundo e do Homem no mundo estava estreitamente ligada, ainda, a uma revolução que tomava lugar no interior mesmo do campo religioso. Por isso, é preciso reter o significado que teve a Reforma, mesmo porque com ela surge outro descentramento: o cristianismo torna-se plural, possibilitando, entre outras coisas, a noção moderna de religião. E Roma deixou de ser o centro único da cristandade ocidental. O surgimento de um novo cristianismo teve efeitos sobre a concepção de ciência (WOORTMAN, 1997, p. 67)

Ora, sendo o Homem o centro de todas as coisas, é natural que o homem passasse a buscar o divino em si, que não mais dependesse da estrutura externa da Igreja. É assim que surge o protestantismo com a sua mentalidade de que o homem pode ter uma relação única e pessoal com Deus, independentemente de práticas externas. Esta mentalidade levou gradualmente à idéia de religião natural, uma espécie de deísmo, e depois ao ateísmo.
Mas se é verdade que “ciência e esoterismo combinados também povoaram o Renascimento (...)” (WOORTMAN, 1997, p. 70), então o protestantismo não pode ter escapado da influência da magia e da mentalidade renascentista quando de sua gênese nos idos do século XVI.

A Reforma, ainda que oposta de várias maneiras a certas manifestações do Renascimento, notadamente seu humanismo, não pode ser compreendida senão com relação ao espírito das audácias do século XVI. Ela foi parte do contexto de idéias renascentista que incluía desde a nova ideologia econômica, o nascente individualismo, os descobrimentos, a nova concepção de ciência, o humanismo e a revisão teológica. (WOORTMAN, 1997, pp. 93 – 94).

Por exemplo, 

o calvinismo foi em vários sentidos um retorno ao antigo judaísmo, mas de forma um tanto paradoxal: combatia a magia, mas terminou por estimular uma perspectiva mecânica do mundo e dos infortúnios, tal como a própria magia (WOORTMAN, 1997, p. 70)

E tratando especialmente do calvinismo, Woortman nota que o mesmo era uma espécie de adaptação teológica à mentalidade econômica e científica da época (WOORTMAN, 1997, p. 74) que acabou por se tornar extremamente intolerante.
Ademais, quando o homem começa a olhar cada vez mais para as realidades físicas e menos para as espirituais, o que se dá é uma perda da compreensão dos símbolos que remetem à transcendência.  Daí o protestantismo ser iconoclasta e contrário a gestos e ritos. O protestantismo recusa a matéria e quer apenas o espiritual. Ele não compreende que é através do mundo material que se chega ao espiritual. No mais, “a Reforma luterana representa o sucesso das heresias nacionais de Huss e Wycliff, tendo ocorrido quando estas duas já estavam extintas” (WOORTMAN, 1997, p. 94).
E para não nos esquecermos de que retorno ao paganismo do período da Renascença implicava em uma recontextualização da magia, Wortman diz:

No contexto renascentista, magia e ciência haviam avançado juntas; uma visão de mundo mística impulsionou a formulação de modelos teóricos sobre o mundo, que seriam retrospectivamente vistos, a partir do século XVII racionalista, como puramente "científicos" (1997, p. 77).

E embora tenha sido omitido o caráter mágico e influências herméticas nos estudos que posteriormente seriam atribuídas a conquistas científicas, pois, conforme Tambiah, “a ciência moderna, em sua marcha vitoriosa, ocultou o passado imediato, e as omissões conscientes de uma geração tornaram-se a amnésia genuína da geração seguinte” (apud WOORTMAN, 1997, p. 111), as descobertas do Renascimento eram, em sua essência, frutos de cosmovisões ocultistas.

O hermetismo do século XVI e o pensamento dos magi foram elaborações criativas, preocupadas com a solução de problemas que também vieram a ocupar as especulações dos cientistas. O ocultismo também aspirava à síntese racionalista, estimulando a imaginação de Copérnico, Galileu, Kepler, Huygens, Newton e outros (WOORTMAN, 1997, p. 112).

A própria questão do Heliocentrismo em Copérnico nada tinha de físico, mas muito de místico. O Sol era entendido por Copérnico como aquele que dá vida ao mundo, daí a necessidade de ele estar no centro. O mesmo pode ser dito de Kepler, pois “se ele foi o fundador da ciência exata moderna, era também um adorador do Sol. Aceitou e defendeu a teoria copernicana porque atribuía divindade ao Sol” (WOORTMAN, 1997, p. 115).
Sob o plano filosófico, o Renascimento faz surgir o individualismo em oposição à idéia de grupo corrente na Idade Média. Dado que através de elementos mágicos e por si só, o homem era capaz de dominar a natureza e de se relacionar intimamente com Deus, ele acabava por se centrar cada vez mais em si mesmo. Além de pôr tudo em dúvida, como era comum no clima de incertezas de seu tempo, Descartes,

foi um dos construtores intelectuais do individualismo moderno. A ênfase do cogito cartesiano está no eu: "...o pensamento, sou eu que lhe dou continuidade, que o desenvolvo". Mas foi também o produto dos processos mais gerais, na direção da autoconsciência, desencadeados no Renascimento” (WOORTMAN, 1997, p. 138).

Assim, nem a religião, nem a ciência, nem a filosofia surgidas do Renascimento escaparam à influência da magia e do ocultismo.

REFERÊNCIA:

Woortmann, Klass. Religião e ciência no renascimento. Brasília – Editora Universidade de Brasília, 1997.

Autor: William Bottazzini 


Um comentário:

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